O tempo corre contra ou a favor dos “coronabonds”?

A norte mantém-se a recusa de partilhar riscos que não são seus e a sul teme-se a repetição de ajudas semelhantes às dadas pela troika. Ao mesmo tempo que a crise aperta, a zona euro mostra dificuldades em caminhar para um consenso

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Mário Centeno com Wopke Hoekstra, o ministro holandês das Finanças, numa reunião em Janeiro passado LUSA/STEPHANIE LECOCQ

Alguns dizem que a crise actual é tão séria que é apenas uma questão de tempo até que a zona euro se decida finalmente a avançar para uma verdadeira mutualização de dívida. Outros respondem que, pelo contrário, não é possível dar um passo tão grande e tão complexo como o lançamento de “eurobonds” a tempo de responder à crise trazida pelo novo coronavírus. A Europa, mais uma vez, hesita sobre o que fazer perante a crise e os quinze dias dados ao Eurogrupo liderado por Mário Centeno para encontrar uma solução de consenso parecem, em simultâneo, serem pouco e demasiado tempo.

Em confronto estão duas visões diferentes sobre como é que os Estados devem obter o financiamento de que precisam para tomar as medidas que limitem a dimensão da crise económica já em curso na zona euro.

De um lado, entre os países situados mais a sul, defende-se, perante um choque externo comum, que dificilmente poderia ter sido antecipado por alguém, que os fundos usados pelos Estados deveriam ser obtido de forma conjunta, partilhando os encargos e os riscos, como forma de evitar que alguns países em situação mais frágil fiquem especialmente sobrecarregados e comecem a ser pressionados pelos mercados.

Do outro lado, tendencialmente mais a norte, a ideia é a de que, embora com algumas verbas a virem de um fundo comum, cada país deve assumir, enquanto puder, os custos do seu próprio financiamento, não fazendo os parceiros assumirem riscos que não são seus.

Destas duas visões resultaram dois tipos de propostas, que, embora com algumas semelhanças, estão ainda longe de conseguir gerar o consenso entre todos os países da zona euro.

Nove países, entre os quais a França, Itália, Espanha e Portugal defendem o lançamento dos “coronabonds”, o nome que é dado no contexto da actual crise aos já muitas vezes sugeridos no passado “eurobonds”, títulos obrigacionistas emitidos em conjunto pelos 19 países da zona euro.

Actualmente, cada um dos Estados emite a sua própria dívida, a taxas de juros diferentes, ficando responsável pelo pagamento do capital e dos juros. No caso de uma emissão conjunta, com uma mutualização da dívida, todos os países garantiriam financiamento à mesma taxa de juro e todos partilhariam o risco de ter de responder em caso de um dos países ser incapaz de fazer face aos seus compromissos.

Em princípio, países como a Itália e Portugal beneficiariam de taxas de juro mais baixas do que as que se praticam actualmente. Em contrapartida, países como a Alemanha ou a Holanda, actualmente com taxas de juro negativas a 10 anos, poderiam ver os seus custos agravarem-se ligeiramente.

Vários modelos possíveis

Há vários tipos de “coronabonds” que podem ser pensados. Guntram Wolff, director do think tank europeu Bruegel, numa entrevista recente ao PÚBLICO, sugeria uma emissão de pelo menos um bilião de euros, cujo capital nunca fosse pago, renovando-se a dívida sempre, e em que cada país receberia os fundos e pagaria os juros de acordo com a sua participação no capital do BCE. E garantia que é apenas uma questão de tempo (e de agravamento da crise) até que a zona euro faça alguma coisa do género.

Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, sugeria, por seu lado, que a emissão, de muito longo prazo, fosse sendo amortizada, recorrendo a uma parcela do orçamento europeu, isto é, os países iam pagando a dívida através das suas contribuições europeias.

Os opositores

Este tipo de sugestões de mutualização de dívida é no entanto recebida com uma oposição consistente de quatro países em particular: Alemanha, Holanda, Áustria e Finlândia.

Para os responsáveis políticos destes países, a mutualização de dívida é uma forma de caminhar para uma união monetária como transferências permanente e volumosas de rendimento dos países mais ricos e mais disciplinados orçamentalmente para os mais pobres e menos disciplinados.

Na actual crise, causada por um factor externo que afectou todos ao mesmo tempo, dizem-se mais dispostos a conceder apoios, mas a linha vermelha que traçaram até agora está mesmo nos “coronabonds”.

Um dos últimos argumentos apresentados é o de que não há tempo para pôr em prática uma medida tão complexa.

Klaus Regling, o alemão que lidera o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), defendeu esta terça-feira em entrevista ao Financial Times que seriam precisos dois ou três anos para que a zona euro pudesse concluir todas as alterações legislativas necessárias para pôr uma nova instituição europeia a emitir “coronabonds” - demasiado tempo para que pudesse ser útil no combate à actual crise.

Do norte, as propostas de apoio e solidariedade que surgem são, numa primeira linha, a utilização flexível dos fundos estruturais europeus, a utilização dos empréstimos do Banco Europeu de Investimento e, em última análise, o recurso, pelos países em dificuldades, aos mecanismos de emergência criados durante a anterior crise e utilizados por países como a Grécia e Portugal.

Perante a evidência de que o orçamento europeu e o BEI nunca terão uma dimensão sequer próxima daquilo que é exigido pela crise, manifestaram abertura para um outro tipo de solução: a utilização das linhas de crédito cautelares já existentes no MEE, podendo cada país aceder, a taxas de juro reduzidas, a um financiamento equivalente a 2% do seu PIB (4000 milhões de euros no caso de Portugal).

Na última reunião do Eurogrupo, antes da cimeira de líderes, houve, de acordo com Mário Centeno, um acordo “amplo” em relação a esta proposta, que depois acabou por ser recusada na cimeira de líderes, com uma oposição particularmente forte da Itália.

Regresso ao passado

É uma versão light de mutualização de dívida, em que, apesar de o valor total ser relativamente baixo, os Estados podem realmente beneficiar de taxas de juro mais baixas. No entanto tem, particularmente na Itália e nos países com a experiência da troika, um problema: tem demasiadas semelhanças com os programas de resgate do passado.

Em primeiro lugar porque em vez de todos receberem o dinheiro, cada país tem de escolher recebê-lo ficando sujeito a um estigma negativo nos mercados.

Depois porque, nas linhas de crédito cautelares do MEE está prevista a imposição de condições aos países. Na entrevista ao Financial Times, Klaus Regling garantiu que, dadas as circunstâncias, as condições exigidas serão mínimas. “Deve estar presente um compromisso de respeitar os mecanismos de vigilância europeus, não será mais do que isso”, afirmou.

Esta garantia não convence no entanto a Itália que parece ter desenhado a sua linha vermelha claramente atrás desta proposta.

A Mário Centeno, presidente do Eurogrupo, cabe-lhe a difícil tarefa de tentar encontrar uma forma de gerar um consenso, a única maneira de se poder caminhar para algum tipo de decisão. Esta terça-feira, numa carta enviada a todos os ministros das Finanças da zona euro, o ministro português, num primeiro passo para a preparação da reunião agendada para a próxima terça-feira, dia 7 de Abril, sinalizou a intenção de ir mais longe na discussão de modelos de financiamento comuns entre os Estados-membros, comprometendo-se desde já a avançar com novas propostas “concretas, bem justificadas e efectivas” e traçando como objectivo que o “inevitável” aumento da dívida pública em todos os países “não se torne uma fonte de fragmentação”

Também esta terça-feira, Charles Michel, Ursula von der Leyen e Christine Lagarde, presidentes respectivamente, do Conselho Europeu, Comissão Europeia e Banco Central Europeu, defenderam que “chegou a altura de pensar fora da caixa”. “Qualquer opção que seja compatível com o Tratado da União Europeia deve ser considerada”, disseram.

Já dos países que parecem estar mais longe de uma posição de consenso, tanto surgem razões para optimismo como para pessimismo. Em Itália, o ambiente em relação ao projecto do euro voltou a deteriorar-se, existindo o receio de que as forças políticas antieuropeístas voltem a conquistar terreno, o que força o actual governo a não se mostrar disponível para grandes cedências.

Na Holanda, depois da reacção muito negativa com que foram recebidas nos países do sul – incluindo Portugal - as declarações do ministro das Finanças, assistiu-se a um debate interno que promete suavizar a posição do país em Bruxelas.

Vários responsáveis políticos integrantes da actual coligação governamental defenderam uma maior abertura da Holanda a mecanismos extraordinários de apoio entre os diversos países europeus. E o governador do banco central, uma figura respeitada a nível económico, assumiu a posição, que é quase generalizada entre os bancos centrais da zona euro, de que os Estados devem procurar formas, incluindo a mutualização de dívida, para poderem responder à crise, não deixando apenas para o BCE o encargo de evitar subidas descontroladas das taxas de juro em países como a Itália.

O próprio ministro das Finanças holandês reconheceu que as suas declarações sobre a falta de capacidade orçamental de Espanha e Itália para fazerem frente à pandemia do novo coronavírus foram “mal recebidas” e revelaram “pouca compaixão”. Ainda assim, reafirmou a sua oposição a qualquer ideia mais ambiciosa de mutualização de dívida. “Os ‘coronabonds’ ou ‘eurobonds’, seja qual for o nome, não são uma solução prudente. É uma solução para um problema que não existe neste momento”, disse.

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