Património cultural português: os princípios

A insistência nesta prática de empréstimo de obras de arte pertença dos museus nacionais a hotéis, fundações ou outras entidades privadas configura uma ameaça real, um abrir mão de responsabilidades que, mesmo que com todas as “garantias técnicas asseguradas pela DGPC” (sic), deita por terra princípios estabelecidos.

O despacho emitido recentemente pela Secretaria de Estado responsável pela tutela do Património Cultural em que se cedem cerca de cinquenta peças do Museu dos Coches ao Grupo Vila Galé para seu usufruto durante um quarto de século num imóvel da Coudelaria de Alter do Chão, abre um precedente grave. Tal não pode deixar de suscitar acrescidas apreensões aos agentes culturais, aos técnicos envolvidos no sector e, de modo geral, a todos os portugueses, fruidores deste mesmo património.

Trata-se, como se conclui do requerimento parlamentar apresentado pelo PCP, e de um artigo de opinião de Luís Raposo há dias aqui publicado, de um caso evidente de apropriação de património público para fins privados. A insistência nesta prática de empréstimo de obras de arte pertença dos museus nacionais a hotéis, fundações ou outras entidades privadas configura uma ameaça real, um abrir mão de responsabilidades que, mesmo que com todas as “garantias técnicas asseguradas pela DGPC” (sic), deita por terra princípios estabelecidos.

Essa prática (a tornar-se prática, esperando que o não seja) nada tem a ver, por exemplo, com o “depósito museológico” que se praticou e pratica em muitos países (recordo sempre o caso dos Paradoros Nacionais de Espanha, ou algumas Pousadas do SNI, em Portugal, para não falar de embaixadas e consulados, para onde se deslocaram peças de reservas de museus num processo que, apesar de tudo, lembrem-se os extravios em vários casos decorrentes, tinha regras de tutela e era sujeito a inventariação, estudo, e medidas preventivas de controlo e salvaguarda, e decorria em espaços de tutela estatal).

Não é a mesma coisa — um argumento falacioso ! — que pelo facto de haver bancos e outras entidades privadas a depositar obras de arte em museus nacionais, como fez o Millennium BCP (e muito bem), o Estado democrático deva imitá-lo nessa prática. Seria (será) sempre um acto lesivo, contrário às sãs políticas patrimoniais, pois além de ameaçar a estrutura física das peças com impactos ambientais dúbios e situações de usufruto imprevisíveis, depaupera na prática as reservas dos nossos museus para decorar empreendimentos privados.

O que se passa é que as Reservas de um Museu são também, antes de tudo, laboratórios de estudo e, di-lo justamente o nome, “acervos de reservas” para exposições temporárias e outras iniciativas na normal programação museológica de uma instituição pública! Só em condições excepcionais e historicamente justificáveis se poderia admitir este tipo de depósito, p. ex. num caso de uma peça cuja origem provenha de determinado imóvel que tenha sido ulteriormente privatizado... mas, mesmo assim, teria de se analisar com toda a prudência, caso a caso, a proposta de empréstimo em regime de depósito,

As obras de arte não são mercadoria nem moeda de contrapartida em nenhuma circunstância. Sejam elas do Estado, da Igreja ou de privados, exigem estudo, atenção, cuidados preventivos de conservação e restauro e, sempre, políticas avisadas de tutela. As obras que pertencem ao Estado impõem uma responsabilidade acrescida, pois são um exemplo de cidadania de partilha e, sempre, o espelho de uma boa gestão pública. Ora, oferecer de mão beijada a uma instituição hoteleira obras de arte que foram adquiridas pelo Estado para um Museu (no caso, parte da colecção Rainer Daehnhardt) é o contrário do princípio, que sempre defendi, de “mais e melhor Estado na área da Cultura”.

O facto de o nosso país ser extremamente rico e sensível no domínio do Património Cultural constitui uma das nossas valias identitárias mais poderosas, e impõe cuidados extremos de dignificação da parte de quem conduz as políticas no sector. Vem-me por isso à memória, com tristeza, uma imagem terrífica de há precisamente um século: a do Angelus Novus (1920) de Paul Klee, ou seja, o célebre Anjo da História de Walter Benjamin, tão carregado da sua melancólica visão de um processo histórico transformado num ciclo incessante de desespero e de ruína. Que assim não seja no nosso panorama cultural e patrimonial!

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