O Acordo Ortográfico não é um facto consumado, é um fato consumido

O Acordo Ortográfico caminha para se instituir como um inesgotável supermercado, onde à secção de “espetadas” (a do célebre “espetador”) vem juntar-se, na fartura de “fatos”, a de “alfaiataria”.

Quem pensava que o tema da ortografia era coisa morta, desengane-se. Não há um único dia em que não se ouçam ou leiam reparos críticos ou, pior, asneiras dele derivadas. E estas, sobretudo estas, povoam o espaço público com a maior impertinência e desfaçatez. Julgando-se certas. Só nos últimos dias, desde finais de Outubro, já ouvimos Pedro Mexia dizer, em tom crítico, no “Governo Sombra” onde se discutiu a composição do novo Governo (TVI24, 25/10/2019), que agora dizem “s’tor” em lugar de sector, “graças ao professor Malaca Casteleiro”; ouvimos ainda, no programa “Entre Tantos” (TVI24, 03/11/2019), a escritora e professora catedrática jubilada Teolinda Gersão criticar o Acordo Ortográfico de 1990 e deixar este reparo: “Não percebo a teimosia de Portugal a defender uma coisa indefensável e que não traz nenhuma vantagem. Este acordo sempre foi uma baralhação e vai dar cabo da língua. Deixemo-lo cair, e os novos livros editados que tornem à grafia correcta”; e vimos a crítica literária, tradutora e revisora Ana Cristina Leonardo escrever na crónica “Nunca mates o Mandarim” (Expresso, 26/10/2019) isto: “Muitos são os exemplos daquilo a que chamei “o cúmulo da estupidez”, seguindo Cipolla, mas talvez o melhor de todos seja o Acordo Ortográfico de 1990”. Quem ler a crónica toda perceberá porquê, mas um dos bons exemplos dessa estupidez publicou-o ela no Facebook.

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É uma fotografia de um cartaz de campanha das últimas legislativas com o seguinte texto: “Zona do Pinhal foi exeção [sic]. É o seu voto que decide. Vota PS.” Comentário: “É a Revolução! É a Revolução! Da mesma forma que cada um se veste como quer, assim cada um escreve como lhe apetece. E, claro, o Acordo Ortográfico não tem nada a ver com isto.” Tem, como todos sabemos e confirmamos dia após dia. Os Tradutores Contra o Acordo Ortográfico, além de registarem (como sempre) tudo isto, ainda publicaram mais um exemplo da miséria que por aí vai em termos de escrita: num rodapé televisivo sobre um “projeto”, lia-se “ojetivo”.

Mas o “cada um se veste como quer” do comentário de Ana Cristina Leonardo não podia vir mais a propósito. Porque cada vez há mais “fatos” por aí, a começar no Diário da República (que na pretensa “aplicação” do AO é de uma criatividade assombrosa) e a acabar nos muitos textos que se acham moderninhos e suprimem consoantes a eito. “Fato” por “facto” e “contato” por “contacto” são de uso corrente no Brasil; mais, são norma no Brasil. Mas o seu uso em Portugal nada tem a ver com os muitos brasileiros que nos visitam ou que aqui moram e com os quais convivemos. São os portugueses que, querendo “acordizar” a sua fala (não apenas a sua escrita) andam por aí a pedir “contatos” e a relatar “fatos”. O Acordo Ortográfico caminha, assim, para se instituir como um inesgotável supermercado, onde à secção de “espetadas” (com o célebre “espetador” como especialidade do dia) vem juntar-se, na fartura de “fatos”, a de “alfaiataria”.

Um excelente exemplo, que recebi agora (e muito agradeço), é o de um Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 22 de Outubro de 2018 e que tem nada menos do que 111 “fatos”, no singular ou no plural, no seu extenso texto. O mais curioso é que, nos descritores do processo se lê “excepção [e não “exceção”] do caso julgado”, “acção [e não “ação”] de impugnação” e “acção [e não ação] de investigação de paternidade”. Já o texto é um real tratado de alfaiataria: “confrontado com tal fato”, “impugnam os fatos”, “fatos provados em primeira instância”, “fatos não provados em segunda instância”, “fundamentação de fato”, “fatos elencados”, “matéria de fato”, “fatos essenciais”, “fatos assentes”, “fatos principais”, “fatos pertinentes”, “fatos instrumentais”, “fatos provados”, “fato probatório”, “fato acessório”, “poder de fato”, etc.

É bom recordar que, a par das patetices pretensamente unificadoras do Acordo Ortográfico, há palavras que mantêm, no uso, grafias distintas em Portugal e no Brasil. Como “facto”-“fato”, “contacto”-“contato”, “amnistia”-“anistia”, “secção”-“seção”. E não se julgue que o menor número de letras usadas em cada palavra fica sempre do lado brasileiro, porque também temos “casino”-“cassino”, “registo”-“registro”, “planear”-“planejar”.

Tudo isto está certo, se cada país usar a sua grafia e correspondente fonética. A misturada, tipicamente portuguesa, que por aí pulula, é que faz do Acordo Ortográfico, não um facto consumado (como muitos julgam), mas um fato consumido. Gasto, corroído, pronto para deitar no lixo. Tarde que seja, é esse o seu destino. Quando a escrita se degradar tanto que nos envergonhe a todos.

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