A triste história da vogal que foi separada de uma consoante e emudeceu

São novas pronúncias que ditam as duplas grafias ou as duplas grafias é que andam por aí a inventar pronúncias?

Amanhã é sexta-feira 13, o MOTELX já divulgou a sua ementa de terrores para entreter um público que gosta de ser assustado e o momento parece ser propício para contar esta história. Mas não a deixem ao alcance das crianças e, se a forem ler em voz alta, mandem-nas antes para a cama. Aqui vai. Era uma vez uma vogal e duas consoantes que viviam como irmãs, felizes a seu modo, respirando o mesmo ar e partilhando espaços contíguos na casa a que chamavam Palavra. As consoantes eram quase gémeas e portavam-se como tal. Sempre juntas, as suas vozes ouviam-se com clareza, num tropeço perto do uníssono. A ponto de as considerarem inseparáveis e lhes porem uma alcunha adequada: dígrafo. A vogal, sempre junta àquela parelha, e em harmonia com ela, fazia-se ouvir com distinção. Felizes, as três. Até que, numa noite, sem que as outras se apercebessem, estranhos entraram em silêncio na casa, amordaçaram uma das consoantes, a que estava mais perto da vogal, e levaram-na para lugar desconhecido. Consta que a torturaram, para a obrigar a confessar as razões da sua existência, e que, nada obtendo em confissão, a mataram, ocultando depois o seu cadáver. Mas diz-se também que a encerraram numa masmorra escura, onde ela definha, na esperança de um salvamento que tarda. Depois daquele dia, a consoante ainda foi conseguindo fazer-se ouvir, mas a vogal perdeu alento e alma, viu-se reduzida a um fio de voz e emudeceu.

Esta história vem a propósito de algo que Marcelo Rebelo de Sousa (Presidente da República) disse na sua última aula como professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde leccionou desde 1972, fez agora um ano, em 20 de Setembro de 2018. Alguém o acusou de ter emudecido o “e” e suprimido o “c” em “expectantes”, ao pronunciar a seguinte frase: “Como conhece a legítima impaciência dos seguidores, sempre atentos à vaga, cada vez mais avara, essencial para os seus expectantes projectos de existência”. Mas, ouvindo com atenção (do minuto 19:05 ao 19:16 do discurso) percebe-se que ele disse “expètantes”, abrindo o “e”.

Mas, ainda assim, “expètantes” soa estranho. Se formos ao Vocabulário de Mudança do ILTEC, que indica o que mudou após o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), mas com a curiosa nota “todos os países exceto o Brasil”, veremos que aplicaram dupla grafia a estas palavras: expectação, expectador, expectante, expectar, expectativa, que passaram a poder ser escritas “expetação”, “expetador”, “expetante”, “expetar”, “expetativa”. Esta “regra” foi adoptada igualmente pelos vocabulários das academias portuguesa e brasileira e pelo vocabulário do IILP. Porém, o Priberam brasileiro pós-AO90 (edição para Kindle) só admite a grafia com o dígrafo “ct”. Já noutro conjunto de palavras próximas, na sequência alfabética, “expetoração", “expetorante", “expetorar", estas surgem sem o “c”, indicando que essa é a grafia brasileira e que em Portugal, antes do AO90, se escrevia expectoração, expectorante, expectorar (o ILTEC e seguidores só admitem para Portugal, neste caso, “expetoração”, “expetorante” e “expetorar").

Mas se formos à página 1644 do Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (o de Malaca Casteleiro, pré-AO, que a Verbo editou em 2001) veremos que para tais palavras, já que este dicionário tem indicações de ortoépia (forma correcta de dizer), não há dupla pronúncia em expectação, expectador, expectante, expectar, expectativa (devendo ler-se sempre “pèkt), enquanto em expectoração, expectorante ou expectorar se deveria omitir o “c”, lendo-se “pèt”.

Voltando aos “expètantes” do discurso de Marcelo: estaremos perante um dilema do género “o que nasceu primeiro, o ovo ou a galinha”? Foi uma nova pronúncia que ditou a dupla grafia ou é a dupla grafia que anda por aí a inventar pronúncias? A segunda hipótese tem maior consistência, como se verá. E a confusão é mais do que muita. Só para dar um exemplo da salada ortográfica que nos é servida diariamente, o jornal A Bola (obrigado, João Barroca, pela recolha cirúrgica e atenta!), numa série de notícias recentes, usa as palavras “expetativa” (duas vezes), “expetativas” (3), “expectativa” (quatro) e “expectativas” (3). Errado? Não, tudo certo. Duplas grafias são para se usar a eito, à vontade do freguês. E duplas pronúncias?

Num excelente texto intitulado Contestação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, datado de 2011-12, António Blanco, da Sociedade da Língua Portuguesa, escreveu: “A nossa oposição deve recair na tentativa de abolição das consoantes ditas mudas, c e p, presentes nas sílabas pré-tónicas. Estas consoantes influem na prolação das vogais que as antecedem, abrindo-as, com clara distinção sónica, como se pode comprovar na pronunciação de vocábulos como: ‘concepção’, ‘recepção’, ‘corrector’, ‘espectador’, os quais, sem a presença das referidas consoantes, facilmente passarão a ser pronunciados com a vogal fechada, seguindo uma tendência típica do português europeu, na sua forma oral, que come letras, omite ou silencia as sílabas átonas (…).” Assim, aquelas palavras “acabarão, com alta probabilidade, pronunciadas, respectivamente, como concessão, recessão, corretor e espetador (aquele que espeta)”. Ou “expetante”, que o “e” aberto emudecerá. É ele, aliás, a vogal desta triste história.

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