A Marcelo não faltam os sonhos, mas “o tempo e o modo” de sonhar

Na lição de sapiência, a sua última aula como professor universitário, o Presidente da República percorreu cinco décadas da história que também foi a sua vida. Com a emoção à flor da pele e esperança no futuro.

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Se tivesse de fazer um sumário da sua última aula como professor da Universidade de Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa copiava Sebastião da Gama, que num dos seus diários escreveu isto: “No sumário pus assim: conversa amena com os rapazes. Sei coisas que vocês não sabem, do mesmo modo que vocês sabem coisas que eu não sei ou já esqueci. Estou aqui para ensinar — ensinar, não, falar delas. Aqui, e no pátio, e na rua, e no vapor, e no comboio, e no jardim, onde quer que nos encontremos.” “Foi sempre assim que eu fui e entendi a missão de professor. Acho mesmo que Sebastião da Gama devia ser leitura obrigatória para os professores”, comentou ontem aos jornalistas no final da cerimónia.

A Aula Magna encheu-se, como antes acontecia com o anfiteatro 1 da Faculdade de Direito, para ouvir a sua lição de sapiência, a última aula que antecede a jubilação, obrigatória aos 70 anos que completa a 12 de Dezembro. Um momento raro, “tão inédito como dificilmente repetível”, como disse Leonor Beleza, presidente do conselho geral da Universidade de Lisboa, ao salientar a coincidência da abertura do ano escolar e da última aula de um dos seus mais prestigiados professores, que termina a carreira académica no papel de Presidente da República.

Marcelo não desiludiu. Quis falar desses 52 anos de vida académica dentro da vida do país e do mundo, e passou em revista década a década, desde 1966, quando entrou para a universidade como caloiro, até este dia em que se despediu da “verdadeira vocação da sua vida”. Falou do mundo e só en passant de si próprio, mas foi a falar de si que terminou: “O mais rebelde, o mais iconoclasta, não consegue travar o andar do tempo. (...) Continua a pensar futuro, mas dá consigo a matutar como já é o último moicano no activo, licenciado e doutorado na pré-história. Não lhe falece capacidade de sonhar, faltam-lhe, isso sim, tempo e modo para esses sonhos.”

“Vivi com paixão, a paixão de não perder um segundo dos sucessivos tempos do mundo, de Portugal, da Universidade e do Direito. Ao caminhar para o fim de uma verdadeira e fascinante aventura, como não agradecer a esta universidade a vida inesquecível que me proporcionou”, disse, já emocionado, agradecendo a mestres, colegas e alunos. “A minha universidade foi sempre a minha praça-forte, a minha casa mater, o meu último refúgio. Tudo quanto fiz ou faço em tantos outros domínios fi-lo a partir dela e por causa dela. O professor que, por ser professor, o era nas lides públicas, e com mais ouvintes do que os que cabiam no anfiteatro 1 da universidade.”

Professor, sempre e em primeiro lugar, mesmo quando se dedicava a outras causas e actividades, como a política: “Depois de cada incursão, à minha escola regressava sempre sem excepção, vitorioso ou derrotado, porque era ela a verdadeira vocação da minha vida.” Mas foi como Presidente da República que rematou o discurso emocionado: “A palavra final é de esperança. Esperança, nesta universidade e em todas as universidades portuguesas, esperança no futuro da educação como penhor da liberdade, igualdade e solidariedade.

A sala levantou-se numa ovação imensa e Marcelo teve de conter a emoção, tal como fizera à chegada ao palco, à frente do cortejo académico, na toga preta bordada que não voltará a vestir. Na primeira fila, dois ex-presidentes — Jorge Sampaio e Ramalho Eanes (Cavaco Silva não compareceu) —, o presidente da Assembleia da República, alguns governantes, representantes dos partidos, provedora de Justiça a outras altas figuras civis e militares. A universidade compareceu em peso e os alunos dividiram-se entre os que esperaram mais de hora e meia para entrar e os que ficaram do lado de fora, a ver a cerimónia em ecrã gigante.

Lições de história

E o que ouviram foi uma síntese histórica, década a década: 1966, “o ocaso da ditadura”, a “encruzilhada entre o passado já fechado e o futuro sucessivamente adiado”, com uma universidade em “luta radicalizada pela impotência da moderação”. 1976, o ano da aprovação da Constituição portuguesa, o “tempo do futuro sem passado, da juventude para sempre”, da “liberdade após a revolução feita de tantas revoluções”, da “universidade criadora” e multiplicada.

A década seguinte, entre meados de 80 e 90, seriam “os anos mais felizes” da sua vida universitária. Mas foi depois de 96 que “as universidades e politécnicos viveram o fim da era Veiga Simão e o começar da era Mariano Gago”. A sua passagem pela presidência do PSD limitou-se a uma referência banal, como “um pontual regresso a incumbências cívicas, nunca abandonando o ensino e outras missões universitárias”.

Chegados ao século XXI, Marcelo diz que “2006 e 2016 são muito semelhantes”: “O universo monopolar perfeito fracassou. Aos poucos, ficou claro que a querela é saber se o centro da economia mundial não regressará a Oriente. A Europa alargou-se ainda mais, mas vive as angústias com esse embate bipolar, agora com novo pólo, pode ser ou não relevante conforme queira ou não sê-lo. A quarta revolução industrial — o digital — aparenta não esperar pela política e o Direito e desafia a economia e a sociedade.”

O retrato que faz dos dias de hoje é um pouco sombrio: “Sonhos e chagas globais convidam a renovados militantismos, em particular aos mais jovens. Mas medos — da ciência, da técnica, da solidão, das crises, das migrações multiplicadas, dos muculmanos, dos forasteiros, dos diferentes, da insegurança, da incerteza — fomentam dramáticas clausuras, fechamentos, exclusões, intolerâncias.”

Quanto a Portugal, “viveu crise aguda que procura não repetir, conhece clivagens marcadas quanto ao futuro, mas ganhou projecção e capacidade de intermediação internacional singular”. Reconheceu que, com a crise, “a universidade sofreu muito, um atraso penoso e de dificílima recuperação, a exigir atenções redobradas”. E deixou um desafio para as gerações de juristas que se seguem: “O Direito tenta corresponder à velocidade vertiginosa da nova era digital, mas tal como a política, com instituições internas e externas a necessitar de substituição. Ou ao menos renovação.” 

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