Catalunha: quando a justiça se mete na política

A causa independentista não é um projecto magnânimo de um qualquer lunático, antes está alicerçada em razões históricas, culturais e identitárias que lhe dão sentido e legitimidade, o que é diferente de dizer que ela deve ser alegremente abraçada por todos e sem reservas.

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Reuters/RAFAEL MARCHANTE

Ficámos a conhecer esta semana a decisão do Supremo Tribunal espanhol de condenar a penas de prisão nove dos 13 dirigentes independentistas levados a julgamento por causa do seu envolvimento no polémico, não vinculativo e apenas simbólico, referendo realizado em Outubro de 2017. O simbolismo do referendo é inclusivamente reconhecido na fundamentação da sentença, onde se diz que a sua realização foi uma forma de “forçar” o governo espanhol ao diálogo e à negociação e que a manutenção, por parte de Madrid, do controlo das forças militar, policial e judicial transformaram uma qualquer aspiração independentista efectiva, a concretizar-se com os resultados do referendo, numa ilusão.

Quer isto dizer que a realização do referendo se traduziu numa acção meramente simbólica, que procurava funcionar como um mecanismo de pressão sobre o governo espanhol então liderado por Rajoy, que se manteve sempre inflexível e decidido a encontrar na Constituição e na lei fundamentos para justificar o seu crescente autoritarismo. Como se esperava, as reacções destemperadas e violentas do governo central tiveram como efeito principal o aumento da simpatia pela causa independentista — ou, pelo menos, pelo reconhecimento do direito do povo catalão a escolher o seu futuro. Nesse sentido, a chegada ao poder de Pedro Sánchez, portador de uma postura mais conciliadora e apaziguadora e menos confrontacional, contribuiu bastante para o relativo serenar de ânimos a que vínhamos assistindo nos últimos tempos, agora interrompido pela decisão do Supremo Tribunal espanhol.

Do lado daqueles que ridicularizam a mera possibilidade de se reconhecer legitimidade ao movimento independentista e à substancial parte da população que o apoia (se corresponde à maioria ou não, ainda não tivemos oportunidade de saber), existe um argumento deveras sofisticado e pertinente que não pode ser ignorado: era como se, de repente, uma qualquer província aqui do nosso rectângulo se quisesse tornar independente. Quem utiliza pérolas deste calibre ou é desgraçadamente ignorante ou, pior ainda, acredita encontrar-se numa posição de supremacia intelectual que lhe permite soltar estas gracinhas saloias. A causa independentista não é um projecto magnânimo de um qualquer lunático, antes está alicerçada em razões históricas, culturais e identitárias que lhe dão sentido e legitimidade, o que é diferente de dizer que ela deve ser alegremente abraçada por todos e sem reservas.

Sem se querer transformar uma questão complexa numa discussão infantil entre “bons” e “maus”, a verdade é que, em todo este processo, ou pelo menos nas suas fases mais delicadas, a actuação mais sensata e democrática tem partido do povo catalão, que apenas pretende pronunciar-se livremente sobre o seu futuro, declinando as vias mais radicais e propícias à violência. Do outro lado, apenas encontramos o despropositado arrazoado jurídico que não é mais do que uma resposta oca, mecânica e sem sentido, a violência repressiva própria dos estados autoritários e, agora, a instrumentalização do sistema judicial espanhol com o objectivo de abafar um problema declaradamente político.

Perante este cenário crítico que tem como efeito a judicialização do confronto político e a criminalização da acção política, como responde a União Europeia? Como responde o suposto exemplo de respeito pelas liberdades fundamentais? Como se indigna o ponto de encontro das nações civilizacionalmente mais avançadas? Da forma a que nos tem habituado: com um silêncio confrangedor que é prova mais do que evidente da sua menoridade política. 

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