Clara Haddad: era uma vez uma narradora de histórias

Contos populares, trava-línguas, brincadeiras com palavras, histórias cantadas. Às vezes kamishibai ou tapetes narrativos. Livros. Tradição oral mundial. Estes são os instrumentos de trabalho de Clara Haddad.

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Nelson Garrido

O sotaque brasileiro está “domado”, digamos, mas não completamente diluído no português – parece-nos um anacronismo melódico, um falar português sem tempo e sem geografia concreta. Clara Haddad ri-se quando lhe falamos nesta (quase) ausência de sotaque e reconhece que teve de “adaptar a sonoridade para facilitar a compreensão”. Afinal, vive da palavra dita. E em trânsito: entre o Brasil e Portugal, sobretudo; mas não só: hoje e nos próximos dias, por exemplo, está por Cabo Verde, onde Mindelo, Praia, São Vicente, Santo Antão, Sal e Santiago são paragens à boleia do Motim - Festival de Teatro Infantil. Na mala, há coisas que nunca faltam. Na mala, há sempre outra mala que leva e traz “os objectos de contar” – histórias. Contadora de histórias, contadora, narradora, storyteller, cuentacuentos, cuentera, não importa o termo nem a língua, importa o que designa, alguém “que vive de contar histórias e, em alguns casos, de escrever também”. “Nasci para fazer isso”, afirma Clara Haddad.

E fá-lo desde sempre. Em criança, já gostava de “falar e fabular sobre tudo” – “também lia o que caía em minhas mãos”, recorda. Cresceu “contando para amigos, familiares e na escola”, sem “pretensão ou intenção” de tornar-se contadora de histórias profissional. “Era divertido. Sabia que amava esse momento e que era importante para mim, sobretudo pela afectividade que se estabelecia”, diz. Fá-lo profissionalmente há 21 anos, depois de ter feito outras coisas – ginástica artística de alta competição, educação física de formação, teatro (como actriz e produtora) de paixão.

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A mala onde transporta o seu material para contar histórias Nelson Garrido

A sua vida dava um ou vários contos – “como toda boa história para contar, tem altos e baixos, obstáculos, desafios e vitória” –, contudo, o que a levou aos contos começou na avó Tafquira, que quando chegou ao Brasil “ganhou” um novo nome, Marta, “porque ninguém sabia escrever o nome dela em árabe”. Essa, brinca Clara, “é outra história”, mas foi esta avó, “nascida no berço da cultura libanesa”, a sua “grande inspiração”. Através dela, teve o primeiro contacto com os contos da tradição oral; dela ouviu o primeiro conto de que se lembra, O Príncipe Adil e os Leões, não por acaso, também “uma lição para a vida”: “não devemos fugir dos leões que encontramos na vida, devemos enfrentá-los, porque nem sempre é o que parece”.

Foi à avó que Clara regressou quando sentiu que lhe faltava algo, numa altura em que trabalhava na área artística. “Era, sim, arte que queria para minha vida, mas de que forma ela seria feita? Para quem? Como? Isso era uma inquietude.” Lembrou-se dos contos e descobriu que existiam narradores profissionais. “Neste momento, a imagem da minha avó, suas histórias tornaram-se cada vez mais fortes e presentes, era como se seguisse um caminho que tivesse interrompido… Percebi que as histórias seriam o meio de fazer-me ouvir, de ouvir os outros, de partilha de afectos e sonhos...” E a sua vida encheu-se.

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Livros da autoria de Clara Nelson Garrido

“Hoje em dia conto histórias populares e literárias para pessoas de todas as idades, dinamizo formação na área do storytelling e mediação de leitura [criou a “Escola de Narração Itinerante”], escrevo livros infantis e me dedico a escrever para ocasiões especiais, como casamentos ou baptizados.”

Transita entre crianças e adultos: “Engana-se quem pensa que somente as crianças precisam ouvir histórias. Contar histórias é um meio de comunicação ancestral”, nota. E todos “gostam de ouvir histórias narradas com emoção, que tragam humor, suspense, alegria, inquietação, questionamento, respostas…”. Transita também no repertório das histórias: centrado na tradição oral mundial, com mais metáforas à mistura e acompanhamento reduzido quase sempre a uma kalimba ou a um spacedrum (instrumentos musicais), para adultos; contos populares, trava-línguas, brincadeiras com palavras, histórias cantadas e, às vezes com suportes narrativos como o kamishibai (teatro japonês de papel) ou tapetes narrativos, para as crianças.

“Gosto dos contos que fazem rir e reflectir sobre situações da vida”, assume. E as reacções variam. Os adultos, avalia, são mais desconfiados, “mas quando começam a ouvir se entregam e se divertem tanto ou mais do que as crianças”. A espontaneidade das crianças e o à-vontade em falar são as grandes diferenças, considera: em algumas sessões, descreve, parece que está num estádio de futebol, tamanha a explosão de gargalhadas colectivas, noutras a emoção é palpável, com grandes silêncios; há expressões de espanto, há lágrimas e olhares fixos, “como se a história tivesse despertado algo escondido dentro do peito…”.

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A kalimba Nelson Garrido

Clara não tem dúvidas de que “todos precisam ouvir histórias e não importa a idade”; e tem a certeza de que “contar histórias é uma função social, uma dádiva, uma missão”, como a avó lhe disse um dia. No final de 1998, depois de muita pesquisa, leitura e releitura, regresso ao “contar” entre família e amigos, deu o seu “grito do Ipiranga”: “Assumi-me como narradora e não uma actriz que conta contos.”

Entretanto, trocou São Paulo pelo Porto há 14 anos – um acaso: numa viagem de trabalho a Portugal, quis conhecer o Porto e “foi amor à primeira vista”. Hoje pensa que “o movimento da narração cresceu em Portugal” e não se vê a fazer outra coisa. A sua profissão continua a ser “uma aventura constante, uma descoberta diária e uma maneira de ser tudo na vida” – é disso que o contador de histórias também se alimenta, das suas histórias e das histórias que vê e que ouve. Clara “guarda-as” na tal mala (feita em fibra de coco no Nordeste brasileiro, que já tem desde o início da carreira), juntamente com uma kalimba, o seu instrumento preferido para acompanhar as histórias (“adoro a sonoridade e a forma com que sua melodia envolve minhas narrativas”), e os livros (“companheiros de sempre, em especial os que escrevi”). Na mala materializam-se todos os “era uma vez” – incluindo os de Clara: “Era uma vez uma narradora de histórias...”.

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