Neto de Moura e o combate à violência doméstica

É bom lembrar que, se Neto de Moura não existisse, tudo indica que a pena seria a mesma.

Os acórdãos de Neto de Moura sobre casos de violência doméstica tiram qualquer um do sério. E eu não sou excepção. A forma como contextualiza os casos para fundamentar as suas decisões é chocante. Por exemplo, no acórdão da moca com pregos, para dizer que um marido estava fora de si quando bateu na mulher e que, portanto, não se tratou de uma agressão premeditada e fria, em vez de se limitar a explicar que o marido estava com dor de corno e que tinha estado internado no hospital com uma grande depressão, vai buscar a Bíblia e faz considerações disparatadas e insultuosas sobre as mulheres que traem os maridos. Por exemplo, diz-nos que “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem” e que “na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte”.

Não li a decisão de primeira instância sobre este caso. É até possível que se tenha contextualizado o caso usando uma linguagem muito diferente para explicar a dor de corno do marido. Se calhar, em vez de citarem a Bíblia, escreveram que numa sociedade patriarcal e machista como a nossa, não é de admirar que os homens, imbuídos deste caldo cultural de masculinidade tóxica com que são educados desde crianças, se passem indevidamente quando vêem a sua virilidade posta em causa.

Qualquer que tenha sido a fundamentação, o essencial, na minha opinião, é que os juízes Neto de Moura e Maria Luísa Arantes mantiveram a sentença que vinha da primeira instância. Se consideramos as penas demasiado leves — cerca de um ano de pena suspensa para o marido e para o amante, cúmplice do marido na espera que fizeram à mulher para lhe bater com a moca com pregos —, é bom lembrar que, se Neto de Moura não existisse, tudo indica que a pena seria a mesma.

No caso mais recente, o do marido bêbado que rebentou com o tímpano da mulher, mais uma vez temos todas as razões para desconfiar que as penas seriam as mesmas, caso Neto de Moura (neste caso com Luís Coimbra) não tivesse intervindo no processo. Vale a pena lembrar que da 1ª instância vinha uma pena de prisão suspensa e uma pena acessória que obrigava o agressor a usar uma pulseira electrónica para garantir que não se aproximava da vítima. A principal decisão de Neto de Moura (e de Luís Coimbra) foi a de mandar retirar essa pulseira electrónica por falta de fundamentação de tal decisão. Houve quem manifestasse dúvidas em relação a essa opção, questionando se não se poderia simplesmente ter devolvido o caso à primeira instância, pedindo ao juiz que a fundamentasse, mas ninguém disse que esta decisão estava juridicamente errada. Por exemplo, há um ano o Tribunal da Relação de Guimarães reverteu uma pena semelhante decretada pelo Tribunal de Vila Verde (aqui perto de Braga) exactamente pelo mesmo motivo.

Ou seja, sem Neto de Moura, as decisões dos tribunais seriam, com toda a certeza, quase iguais. Mas, da parte que me toca, os acórdãos de Neto de Moura são importantes pela sua transparência. Por exemplo, do marido bêbado que rebentou com o tímpano da mulher com uns socos foi dado como provado que “pelo menos uma vez por semana”, estando bêbado, insultava a mulher. Por diversas vezes, esbofeteou-a, causando “hematomas, edemas, escoriações e dores”. Por duas vezes, ameaçou-a com uma arma de fogo (ou objecto com essa aparência). De uma das vezes, deu-lhe tantos socos que lhe perfurou o tímpano esquerdo. Houve também um dia que a ameaçou com uma catana. E, de acordo com o acórdão, tudo isto se confina “àquilo que é a situação mais comum no quadro geral da violência doméstica”, daí a pena suspensa de 2 anos e 8 meses (tinha sido de 3 anos em primeira instância).

Será que Neto de Moura e Luís Coimbra estavam alucinados quando consideraram isto uma situação comum de violência doméstica? A pena que veio da primeira instância diz-nos que não. Afinal, a pena prevista para este crime é de 2 a 5 anos e a pena aplicada ficou mais próxima do limite mínimo do que do máximo. Ou seja, podemos ficar revoltados com a linguagem usada, mas, na verdade, ela traduz o sentimento dos nossos tribunais e da nossa legislação sobre este assunto.

Se os acórdãos de Neto de Moura tiveram o efeito positivo de trazer a discussão da violência doméstica para a ordem do dia, é importante que usemos essa discussão para perceber melhor o sistema. Gostaria de saber, por exemplo, o que está a ser feito para proteger esta mulher depois de ter sido retirada a pulseira electrónica do ex-marido, que o impedia de se aproximar dela. Já houve várias notícias a relatar que o condenado já lhe fez mais ameaças. Isto está a ser investigado? Não é uma violação da pena suspensa?

Como nos explicou André Lamas Leite, na edição de 25 de Fevereiro no Público, neste momento protege-se mais a vítima antes e durante o julgamento que após a condenação. Tem-se consciência disto há anos. Quando pensam mudar?

Faz sentido que as penas previstas para a violência doméstica sejam de 2 a 5 anos de prisão ao mesmo tempo que se prevê a suspensão da pena para condenações que vão até aos 5 anos? Se este caso do tímpano perfurado vale uma condenação de três anos, o que seria necessário ocorrer para se chegar aos 5? Num caso desses, seria razoável suspender a pena? Ou vamos passar a vida a indignar-nos com agressores recorrentes, que são enviados em liberdade, deixando as vítimas num estado de medo permanente?

Destes casos, e de outros que não referi, concluo que combater Neto de Moura é um pouco como decretar o Luto Nacional pelas vítimas de violência doméstica, quando nem sequer há dados fiáveis com base nos quais se possam desenhar políticas. Ficamos no domínio do simbólico. Eu não quero desvalorizar a questão simbólica. Acórdãos como os de Neto de Moura geram revolta e criam uma sensação de insegurança em todas as vítimas de violência doméstica, que ficam a saber que ao irem para tribunal serão também julgadas. Por isso é pena que o Supremo Tribunal tenha vetado o pedido do juiz para não julgar mais casos de violência doméstica. Mas é importante perceber que o afastamento de Neto de Moura mais não seria do que uma boa maquilhagem. Ficaríamos com acórdãos mais limpos, sem contextualizações preconceituosas e com fundamentações mais ao nosso gosto, mas com as mesmas sentenças e a mesma desprotecção das vítimas.

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