Venezuela e "Brexit" – as falhas do Governo português

1. A Venezuela nada tem a ver com o "Brexit"; o "Brexit" ​nada tem a ver com a Venezuela. Num caso, estamos perante uma gravíssima situação humanitária, decorrente do avanço gradual de um regime ditatorial perverso. No outro, estamos perante um desenvolvimento político de enorme impacto, mas resultante do normal processo democrático, ainda gerível, mesmo no pior dos cenários (saída sem acordo). Há, no entanto, do ponto de vista da política externa, alguns traços paralelos. Em ambos os países, com diferentes graus de radicação e de estabilização, existem comunidades lusas na ordem das centenas de milhar. Em ambas as situações, é fundamental definir posições políticas de médio prazo, desenhando o formato da relação bilateral futura. No caso da Venezuela, para lá da nossa vocação latino-americana, essencialmente por causa da presença da comunidade lusa. No caso do Reino Unido, também por força de um interesse estratégico permanente, em que se joga a segurança e a defesa nacional e o posicionamento futuro dentro da UE. Em suma, o transe da Venezuela é totalmente diverso da situação do Reino Unido, mas ambos exigiam e exigem uma capacidade de antevisão e uma visão de médio prazo que estão ausentes do horizonte da política externa deste Governo. 

2. Nos últimos dez dias, o ministro Santos Silva – sempre intermitente em matéria europeia – tem-se desdobrado na apresentação de um plano de contingência para um desenlace do "Brexit" que termine numa saída sem acordo. O plano, concebido sem ter em conta qualquer visão de médio prazo, visa acautelar a situação dos cidadãos e das empresas. Para além de elencar algumas medidas dificilmente exequíveis e largamente dependentes de uma rede consular imaginária, para não dizer fantasma, este plano chega tarde.

3. Tal como na Venezuela, em que a situação era e é muitíssimo mais grave, tocando o limite da emergência humanitária, o Governo esteve inerte por longo tempo e actua negligentemente. Apesar das notícias que, depois do Verão – e só depois do Verão –, vieram à luz neste jornal sobre o alegado apoio aos portugueses e aos seus descendentes, o quadro destes três anos foi de mero cálculo político e de abandono no terreno das comunidades lusas. O plano de ajuda aos luso-venezuelanos chegou tarde e, ainda por cima, com a nota de que estava secreta ou discretamente em execução há muito tempo. Ora, é bem sabido o quão compreensivo e complacente o Governo português foi com Maduro, para já não lembrar o quão colaborante havia sido, em seu tempo, com Chávez. Na verdade, com muitos dos actuais ministros em funções governativas, Sócrates e Chávez foram grandes aliados políticos. Quem não se lembra dos computadores Magalhães, das empreitadas de construção em Caracas ou das rocambolescas encomendas de navios? Nessa época, em que o ministro Santos Silva, tal como hoje, tinha as mais altas responsabilidades públicas, não faltou quem alertasse para o desastre político, económico, social e humano que estava montado em Caracas. Mas estes negócios singulares e, agora mais recentemente, as simpatias do PCP, do Bloco e de intelectuais como Boaventura Sousa Santos, tudo suavizaram, tudo relativizaram, tudo adiaram. Os que agora rasgam as vestes com a Venezuela e se escandalizam com Maduro são os mesmos que antes teciam loas ao modelo venezuelano e à sua via do “socialismo bolivariano”. Estou especialmente à vontade, porque, nestas mesmas páginas, também critiquei algum deslumbre, ainda que mais ténue, do ministro Paulo Portas com a aventura venezuelana.

A verdade é a paciência beneditina do actual Governo português traduziu-se numa confiança cúmplice de que a comunidade lusa seria miraculosamente poupada ao processo de pauperização em curso. Os venezuelanos poderiam sofrer, mas a amizade chavista de Maduro excepcionaria e salvaria os portugueses. Pois bem, por mais prudência que fosse necessária para não pôr em risco a situação das nossas comunidades, a tolerância e a complacência para com o regime de Maduro, a confiança negligente de que nada sucederia, conduziram a população em geral (aí incluída, claro está a comunidade lusa e luso-descendente) a uma situação de urgência gritante. O problema aqui não é apenas o alheamento a que foram votadas as comunidades portuguesas, apesar das juras em contrário do secretário de Estado responsável em razão da matéria. É também a absoluta falta de uma estratégia de médio prazo que pudesse antever o terrível desenlace em que nos encontramos. E, diga-se de passagem, este desenlace não era difícil de prever.

4. Eis o risco a que estamos outra vez expostos, embora sem nenhum deste dramatismo humanitário (mas com muito “custo” humano), a propósito do "Brexit" e das comunidades lusas em terras britânicas. O plano de contingência vem tarde e a más horas. Se tudo se precipitar dentro de 60 dias, numa saída abrupta para um salto no escuro, o Governo cairá em mais uma saga de improviso e de resposta atabalhoada, que só somará confusão a uma situação que, já de si, tenderá para o caos. Toda a previsão de contingência está feita sem uma única reflexão sobre o que queremos no futuro com os britânicos e o que isso muda na nossa vida europeia.  

De há muito que digo e escrevo: porque não se constituiu uma frente de países médios de vocação atlântica, que definissem uma posição comum dentro da UE (Suécia, Dinamarca, Holanda, Irlanda) e que são os que mais perderão com a ausência da grande potência atlântica britânica? Porque nos resignámos a fazer parte do clube Med e do clube da coesão e não fomentamos, a par daqueles e sem nunca os descartar, um clube atlântico dentro da UE? Tudo seria mais previsível e controlável. Alguns dados surpreendentes do Eurobarómetro mostram que temos mais afinidades com o clube atlântico do que com o Sul mediterrânico.

O ministro Santos Silva é inegavelmente um homem culto e inteligente. Mas deixou-nos – a nós e aos portugueses que vivem fora do país – a navegar à vista.




 

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