Iluminados pelo fogo

Pedro Costa fez do Museu de Serralves um lugar de reencontro com o cinema, com o mundo dos deserdados e esquecidos e com aqueles que cuja companhia preserva e cultiva: amigos, vivos e mortos. Pedro Costa - Companhia faz o espectador entrar em labirintos, corredores, memoriais, iluminado por vozes e gestos que são os de uma humanidade comum.

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Nelson Garrido

Há onze anos, Pedro Costa concluía uma conversa com uma exortação dirigida ao museu (podemos lê-la no catálogo da exposição Pedro Costa, Rui Chafes: Fora! = Out!). Que este devia ser ousadia e felicidade, e citava os filmes Cézanne e Uma Visita ao Louvre (2004), de Jean-Marie Straub e Danièle Huille e Bando à Parte (1964), de Jean-Luc Godard. Diante do corredor que começa Pedro Costa Companhia, no Museu de Serralves, essa ousadia é solicitada a quem chega, pois, para entrar, tem de correr o risco do escuro, sondar o espaço. Descemos o corredor, o corpo parece imobilizar-se, enquanto, ao fundo, a cena final de Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Cordeiro avança veloz, cresce, agiganta-se ao rimo do silvo e do fumo do comboio. A sensação é de vertigem e reminiscente desse encontro, absolutamente solitário, na sala escura que as imagens iluminam: com o espanto do cinema.

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A sensação é de vertigem e reminiscente do encontro, absolutamente solitário, na sala escura que as imagens iluminam: com o espanto do cinema Nelson Garrido
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Nelson Garrido

Esta é primeira grande experiência de Pedro Costa Companhia, exposição que, dedicada ao cineasta português, pode ser vista como uma colectiva, uma exposição de um grupo, um grupo de amigos. Artistas, pintores, poetas, cineastas, actores e actrizes, uns vivos, outros mortos, representados nas obras. Todos, aqueles que ele escolheu para lhe fazer companhia: Pablo Picasso, Robert Bresson, António Reis, Walker Evans, João Queiroz, John Ford, Jeff Wall, Jacques Tourneur, Maria Capelo, Andy Rector, Jean-Luc Godard, Max Beckmann, Paulo Nozolino, Jacob Riis, Rui Chafes, André Cepeda, Charlie Chaplin, Robert Desnos, Ventura. Quando se fala de amizade, está-se a falar, inevitavelmente, do mundo, do mundo a que o museu deve a sua existência, e que existe fora das paredes brancas. E para Costa esse mundo é o dos deserdados, dos esquecidos, dos homens e das mulheres comuns, daqueles que o progresso calca, imparável, na sua marcha. Antes desse encontro com o comboio na noite de Trás-os-Montes, há um retrato de um homem negro, pintado por Théodore Géricault (1791- 1824). É o mesmo que pudemos ver em Cavalo Dinheiro (2014). A exposição começa assim, numa pintura. Desse retrato, aparecerão outros na parede do corredor, de personagens e actores do mesmo filme, em impressões fotográficas. Ventura, Vitalina, Tito e, talvez, o de Tom Joad, interpretado por Henry Fonda, em As Vinhas da Ira, de John Ford. Entre o retrato pintado por Géricault e estas projecções, quais pinturas rupestres iluminadas pelo fogo, o espectador descobre outra entrada para Pedro Costa Companhia. Num labirinto, feito de corredores, passagens, vultos e imagens, luzes, sombras. Um cenário reminiscente do cinema expressionista alemão do século XX, com os seus ângulos e volumes. Nas paredes deste cenário labiríntico, só há uma acção. A do encontro do espectador primeiro com o cinema que Pedro Costa ama, e num segundo momento com a carta de Robert Desnos a Youki (que o cineasta transfigurará em Juventude em Marcha), o desenho de Pablo Picasso e um trabalho de Andy Rector.

Dois cinemas

Detemo-nos no encontro com o cinema. Em televisores encastrados nas paredes, vêem-se excertos de filmes, que condensam momentos e acções cujos significados não perdem, ainda hoje (e talvez sobretudo hoje), o seu poder de revelação. Entre muitos, três: o encontro do vagabundo de Luzes da Cidade, de Charlie Chaplin, com a mulher que finalmente o pode ver (“Yes, I can see now”, diz ela), o discurso de Josiah Doziah Gray (Joel McCrea), em Stars in My Crown, de Jacques Tourneur que, dirigido ao coração dos outros, impede um assassinato racista ou as palavras lancinantes do pedófilo e assassino Hans Beckert (Peter Lorre), que suplica em M (1931), de Friz Lang, pelo reconhecimento da sua própria humanidade. Na mesma conversa, mencionada no início deste texto, Pedo Costa disse temer a presença dos televisores nos museus. Pois, ei-los, a fazer aparecer esse cinema, como uma forma arcaica e quase perdida de ver e narrar o mundo. Em excertos, fragmentos, memórias de vozes e palavras, gestos e acções que nos assombram. São eles, miniaturizados, reduzidos (como se protegidos pelas paredes do museu, como se não restasse outra coisa que esse exílio, o do arquivo) que rodeia, que protegem a sala de Alto Cutelo, uma instalação que Costa havia mostrado em 2012, no Carpe Diem e na galeria do Palácio Galveias, no âmbito do DocLisboa 2012. No ecrã, grande, alto, Ventura canta as dores da partida e da emigração. Evoca a história do homem que parte, da mulher que fica, dos filhos, da terra que deixou para trás. Noutro ecrã, os vulcões soltam lava e fumo (são imagens de A Ilha do Fogo, de Orlando Ribeiro). Portugal, Cabo Verde, Lisboa, o trabalho, a exploração dos homens pelos homens, a contingência da política e da história iluminam, à volta da qual circulam as histórias do cinema.

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Numa sala escurecida, cada imagem ocupa uma coluna, pedindo para ser vista individualmente, a uma escala humana. É um memorial colectivo que a fotografia tornou possível Nelson Garrido

Entretanto, a escuridão do corredor atenuou-se. O olhar habituou-se à luz e à sombra, e assistimos à primeira “conversa” entre artistas: um conjunto de peças de Rui Chafes e a instalação Filhas do Fogo, de Pedro Costa.  Suspensas do tecto, as esculturas, finas e pesadas, desenham um bailado, que parece apontar ao céu, com os rostos, projectados nos ecrãs, das mulheres que ficaram, para trás, com os seus mistérios na Ilha do Fogo. As histórias, as personagens libertam-se da narrativa, no espaço. Este já é outro cinema, mas ainda é a exposição, o trabalho de Pedro Costa.

Famílias e retratos

A questão do trabalho, mais exactamente de como representar, filmar, fotografar os outros, respeitando-os, na sua irredutível dignidade, surge na aparição do livro Let Us Now Praise Famous Men (1941) de James Agee e Walker Evans, que documenta e retrata a vida quotidiana de trabalhadores rurais e pobres do Sul dos EUA, durante a Grande Depressão. Numa pequena sala, vemos os retratos de Allie Mae Burroughs e Floyd Burroughs, as casas, os objectos, os alpendres, mas é nas questões que James Agee, crítico e escritor, levanta no prefácio, pressente-se outra afinidade com Pedro Costa que não passa por temas ou conteúdos, mas tem a ver com a atitude em relação ao método de trabalho, à representação do outro, ao destino das imagens, aos princípios que presidiram à sua realização. Agee tem pudor em apelidar de “Arte” o livro e as suas imagens. Não serão estes dilemas familiares ao cineasta? Não é apenas uma sensibilidade comum às coisas que o torna amigo de Evans e Agee, mas também dúvidas, hesitações, questões que enfrentou na companhia dos outros. Uma família que se foi construindo e consumindo ao longo de três décadas e que podemos ver nas séries de fotografias, alusivas às rodagens dos filmes (de Sangue, em 1989 até Vitalina Varela, em 2018). Estão lá os retratados (Inês Medeiros, Canto e Castro, Pedro Hestnes, Vanda Duarte, Zita Duarte, Ventura) como aqueles que retrataram: Martin Schafer; Mariana Viegas, Richard Dumas, Marta Mateus, o próprio Pedro Costa.

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Uma família que se foi construindo e consumindo ao longo de três décadas: fotografias das rodagens dos filmes, de Sangue, 1989, até Vitalina Varela, 2018 Nelson Garrido

É desta galeria que descemos ao segundo piso, onde nos aguarda uma clareia banhada pela luz natural. Aqui não se mostram filmes, mas pinturas de paisagens de Thomas Gainsborough, João Queiroz e Maria Capelo, ou antes retratos de paisagens, algumas das quais deixam entrever vestígios da presença humana. É o momento mais desequilibrado da exposição, porque a luz queima o escuro da outra sala, impedindo o espectador de ver Puissance de La Parole, de Jean-Luc Godard. Como se a luz e escuridão, a pintura (na sua impassibilidade) e cinema (na sua ruidosa agitação) tivessem dificuldade em habitar, lado a lado, o mesmo museu.

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Um labirinto feito de corredores, passagens, vultos e imagens, luzes, sombras. Um cenário reminiscente do cinema expressionista alemão, com os seus ângulos e volumes Nelson Garrido

Um memorial

Passado este desencontro, percorrem-se corredores e becos, passagens, descobrem-se acessos a salas, como a que reúne Paulo Nozolino e Pedro Costa, amigos de muitos anos: de um lado, fotografias, silenciosas, quase sem tempo e sem lugar, do outros, sons e imagens em movimento que reconhecemos do Bairro das Fontainhas. Fotografia e cinema, ambos testemunhos mundanos de sítios e pessoas. Entretanto, adensam-se rumores e ecos do que ainda está para vir e ver. A fragilidade e o sofrimento humanos ganham sentido na fotografia de Josef Koudelka, realizada em 1968 na Checoslováquia, e num desenho do artista expressionista alemão Max Beckmann, intitulado Descida da Cruz, mas são os gritos e a música de uma cena de Give Us This Day, de Edward Dmytryk que despertam a atenção, que assustam, que afligem. Ela torna visível o drama dos homens que construíram os arranha-céus de Nova Iorque, outro Ventura entre tantos Venturas na história da humanidade. Pedro Costa insiste em lembrar que o cinema também esteve ao serviço os homens comuns, quando os libertou, pela ficção, do olvido, quando dramatizou as suas vidas: “Vejam. Não se esqueçam”, segreda. Esta frase ganha uma força mais intensa diante da instalação das fotografias de mulheres, homens, crianças, famílias que Jacob Riis realizou em 1890 no início do século XX, nos bairros mais pobres de Nova Iorque. Numa sala escurecida, cada imagem ocupa uma coluna, pedindo para ser vista individualmente, a uma escala humana. É um memorial coletivo que a fotografia tornou possível e em que cada imagem, ressuscita, por instantes, no encontro que o espectador lhe proporciona, as figuras fotografadas. Memorial que temos de atravessar para ver Sweet Exorcist. E aí voltar a escutar o medo de Ventura, o medo de que será esquecido, de que ninguém o lembrará. E, então damo-nos conta, de que Pedro Costa, na companhia dos seus amigos, vivos e mortos, não só não o esqueceu, como o salvou, se não com felicidade, certamente com a ousadia de quem correu, acompanhado, pelas salas do museu.

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