Pedro Costa e Rui Chafes: diálogo de luz e sombras na cidade de Tóquio

Foto
Desenvolver as tensões e expectativas que a relação entre as esculturas e os filmes produzem DR

É um encontro, num museu japonês, em que Ventura, Vanda e os seres que habitam o cinema do realizador vêem a voz e o corpo prolongados nas efabulações a ferro e fogo do escultor

Mu não é só um título, mas designa o mote que uma nova etapa de diálogo entre o realizador Pedro Costa e o escultor Rui Chafes assume. Retirado da campa do realizador japonês Yasujiro Ozu (1903-1963) em Kamakura, esta palavra pode ser traduzida por "nada", mas o seu sentido é mais vasto e amplo: não designa um vazio ou uma inexistência, mas o processo através do qual algo passa da existência a não existência, do ser ao nada - ou seja, o processo através do qual algo se nadifica. E, a esta luz, podem entender-se estes novos trabalhos como mais um passo não em direcção à formação de novas imagens ou novas formas mas em direcção a um conjunto de presenças mais intensas, espirituais, humanas, sensíveis e imateriais.

O espaço onde esse diálogo tem agora lugar é o Museu Hara em Tóquio, museu que ocupa uma casa numa zona residencial da capital japonesa, casa essa que sobreviveu à II Guerra Mundial e a uma longa ocupação das tropas americanas. Só em 1979, depois de um longo período de abandono, abriu como espaço museológico dedicado à arte contemporânea e desde essa altura já fez centenas de exposições com artistas internacionais de grande notoriedade, como Pipilotti Rist, Sophie Calle, Adriana Varejao ou Olafur Eliasson. Um museu que não é totalmente estranho a Rui Chafes: já em 1993 tinha estado aqui numa exposição colectiva de arte portuguesa contemporânea.

Escultura e filme: tensões

O diálogo entre Chafes e Costa começou com a exposição Fora!, no Museu de Serralves no Porto, em 2005, e desde essa altura que os dois artistas sentiram vontade de desenvolver as tensões, intensidades e expectativas que a relação entre as esculturas e os filmes produzem. Não se trata de uma relação didáctica, ilustrativa ou de conversão da escultura em imagem ou da imagem em corpo no espaço, mas de mostrar o modo como esses dois universos distintos se iluminam e contaminam.

Esta presença no Hara não é uma digressão ou uma transposição dos trabalhos de Serralves, mas mistura trabalhos anteriores com novas obras, algumas das quais, como Chafes gosta de contar, "desenhadas há um ano no avião de regresso a Lisboa enquanto sobrevoava a China e depois de termos visitado o espaço para a exposição". Se o "diálogo", que é o modo como ambos gostam de chamar às suas colaborações, segue o modelo da exposição no Porto, tem uma natureza e dinâmica diferentes, até porque as vozes dos trabalhos do escultor e do realizador se juntam às vozes e às memórias existentes na casa que agora habitam.

Para Rui Chafes, os filmes de Pedro Costa são "a luz" que ilumina as suas esculturas "e os olhos das pessoas que as querem ver", disse durante a inauguração perante uma sala a abarrotar de jornalistas, de músicos, como Jim O"Rourke dos Sonic Youth e Colin Newman dos Wire, e dos cineastas Naomi Kawase, Shinji Aoyama e Nobuhiro Suwa. Uma inauguração em que os kimonos conviviam com os fatos pretos e minimais de designers famosos, expressando a formalidade e o peso da tradição da cultura japonesa tão presente na troca obsessiva de cartões, na sucessão de vénias e nos cumprimentos intermináveis.

Pedro Costa sublinha que a relação com o trabalho do escultor passa, a seus olhos, sobretudo por uma forte afinidade metodológica: e diz que os seus trabalhos se encontram com os de Chafes "na solidão que necessitam para a sua realização e na dureza existente em ambos os trabalhos". Um encontro em que Ventura, Vanda e todos os seres e coisas que habitam o cinema de Costa passem a ver a sua voz e o seu corpo prolongados nas ideias e "efabulações", como diz o escultor, construídas a ferro, fogo e palavra por Chafes.

Caso sério de popularidade

Mas se a exposição é a face mais visível da presença do escultor e do cineasta portugueses em Tóquio, ela foi antecedida por um conjunto de conferências e por um ciclo de cinema com filmes escolhidos por Chafes e Costa e com as sessões quase sempre esgotadas. Um sucesso em parte devido a Pedro Costa, que é um caso sério de popularidade no Japão e pelo menos desde a estreia de O Quarto de Vanda em 2001.

Um sucesso que, segundo Nabuhiro Suwa, importante cineasta japonês (Yuki e Nina, Un couple parfait, H Story, M/Other) e grande admirador de Pedro Costa desde que o conheceu em 2001 no Festival de Cinema de Yamagata, se deve ao facto de o cinema do realizador português fazer parte não do cânone europeu ou do contexto português, mas possuir "uma sensibilidade, uma ética e um modo de olhar para o ser humano muito raros e pouco comuns no cinema contemporâneo e que o fazem ser um cinema universal".

Sublinha: "A razão do seu enorme sucesso e popularidade no Japão é que os japoneses se reconhecem e se encontram nos seus filmes."

Em conjunto, Pedro Costa e Rui Chafes trouxeram uma escuridão intensa para este museu japonês. Não se trata só da escuridão que reconhecemos nas pessoas, nas casas e nas vidas do cinema de Costa ou na matéria e nas sombras das esculturas de Chafes, mas da escuridão provocada pela ausência de luz, de céu, de exterior. Entrar neste museu é entrar num universo regido por leis próprias e sem referências exteriores em que são os rostos intensos de Ventura e de Vanda que dominam em conjunto com os dispositivos de Rui Chafes que umas vezes são corpos orgânicos ou vegetais, feitos de sombras e luz, e outras vezes são barreiras impenetráveis que impedem a visão, o diálogo e qualquer relação com a vida das personagens dos filmes. Tudo aspectos que imprimem uma atmosfera claustrofóbica e tão intensa que por vezes é preciso sair da galeria para poder respirar.

Sugerir correcção