Todo o corpo vê na pintura de João Queiroz

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"Silvae", a primeira antológica de João Queiroz, é um reencontro generoso com a paisagem, neste mundo abatido sob o peso de imagens, ecrãs e pixéis. Pinturas e desenhos feitos com o corpo e para ver com o corpo, na Culturgest, em Lisboa

Há exposições onde nos podemos perder, sem receios, acompanhados apenas pelo corpo das obras. "Silvae", que inaugura hoje na Culturgest, em Lisboa, é uma exposição assim. Reúne pinturas e desenhos que João Queiroz (Lisboa, 1957) produziu ao longo de 20 anos e devolve ao espectador um olhar silencioso sobre os pequenos acontecimentos da Natureza. De uma forma muito singela, tradicional mesmo, via pintura, desenho e um (cada vez menos) familiar género pictórico: a paisagem. As duas galerias da Culturgest estão literalmente ocupadas. Com aguarelas, pinturas a óleo, desenhos a carvão, lápis de cor. Uma floresta na qual se vislumbram paisagens, arbustos, árvores e outros motivos. Uma floresta que tem um autor e uma origem.

"O [meu] interesse pela paisagem vem da pintura e menos de um interesse romântico pela natureza", explica João Queiroz. "Vem da experimentação visual do século XIX. E está relacionado com a possibilidade de ver as coisas de outra maneira, de relacionar o acto de ver com o acto de fazer. É um tema a que a paisagem permitiu imensas experiências, começando logo pelas do Cézanne". Foi no encalço desta tradição, desta atitude, "para ver se ainda podia ter uma continuação pertinente", que o artista (influenciado pelo pensamento visual que encontrou na Filosofia enquanto estudante da disciplina na Faculdade de Letras de Lisboa) chegou ao objecto central da sua obra: a percepção da natureza. "No fundo, interessa-me a percepção, a percepção que está comprometida com esse olhar, com esse formar dos objectos".

Um território por explorar

"Silvae" indicia os sinais inaugurais desse grande tema logo na primeira galeria, onde corre uma narrativa cronológica composta por obras produzidas entre 1992 e 1996. São exercícios, investigações livres, realizados por João Queiroz quando ensinava Desenho e Pintura na Ar.Co - como os desenhos feitos com um capacete ou à frente de uma televisão. "Os motivos desse período de experimentação estão relacionados com a necessidade de pensar o exercício do desenho, fazendo movimentar a percepção, a imaginação, o corpo", revela. "Como é que a minha maneira de entender qualquer coisa canaliza ou modaliza a minha visão, como é que a minha estrutura corporal também o faz?"

Fundamental neste questionamento, o desenho estabelece, num sentido lato e prático, uma relação directa com a interpretação visual da natureza e do mundo. "A memória também é importante, mas no fundo é com ele que registamos a agregação do que estamos a fazer. Numa multiplicidade de actos que temos à nossa frente, o desenho é um processo de escolha". Que antecede a pintura? "Sim. Não vou fazer a pintura daquele ou doutro desenho, mas os desenhos que acumulei servem muitas vezes de base ao tipo de relações que depois se vão estabelecer na pintura com a cor, a luz, a pincelada". Exemplar deste método (que, sublinhe-se, não tem um carácter prescritivo), a série "O Ecrã no Peito", de 1999, organiza-se como um dos léxicos a que o artista recorre na sua pintura de atelier: paisagens e pormenores de paisagens, arbustos, caminhos, ervas, desenhados com o carvão de pauzinhos queimados numa lareira na Beira Alta.

O momento em que paisagem e a natureza se abriram como territórios de exploração aconteceu em 1997 durante uma residência artística, dedicada ao desenho, no Feital, Beira Alta. "Tudo aquilo que vinha a fazer antes, que começara a aprender e a desenvolver, começou a permitir-me ter instrumentos para criar uma relação natural com o que pensava e via. Foi uma passagem". Para trás ficava o peso conceptual dos exercícios, a ênfase no processo, embora já nessa altura nunca estivesse em causa - tal como hoje - o efeito sobre o espectador. Repare-se nas pinturas de cores e superfícies de cera dura datadas de 1994, que convidam ao tacto, ao toque da mão. Têm uma espessura que lembra a da pele. E o corpo? Onde fica o corpo? "A pintura, com os materiais da tela, acrescenta uma dimensão háptica ao acto de olhar", responde João Queiroz. "Colocamos os olhos de maneira diferente ao aproximarmo-nos e afastarmo-nos. A pintura e o desenho dão muito espaço a essa experimentação. Todo o corpo vê, os olhos não são mais do que uma parte especializada".

A natureza é outro corpo

Todo o corpo vê em "Silvae", que perto da segunda galeria se baralha cronologicamente, transformando-se num emaranhado de sensações, impressões e percepções em que o pequeno (ervas, vegetação) confronta o grande (o céu, um arvoredo). Algumas obras reúnem-se pela primeira vez e descobrem-se salas invernais, zonas iluminadas, folhagens ameaçadoras. Desenhos delicados, luz, negrume. Cores quentes, formas feitas com madeira queimada ou a sanguínea. E a abstracção? Devemos falar dela? "Há momentos ou formas que estão mais depurados ou simplificados, mas nunca há um movimento à Mondrian. Não vai por aí. Já foi feito e muito bem". Em certas pinturas, porém, a paisagem está apenas subentendida num relação de intensidades e modelos. "Quando isso se verifica, predomina a relação com a pintura, a cor e a matéria. Mas quando está menos subentendida, desvia-se da materialidade. Eu gosto de trabalhar entre esses espaços: nem é a representação completa, nem é a abstracção completa".

O fazer e o interpretar da representação provoca uma desordem das formas e das cores que agrada ao artista: "Quando há uma ordem, há uma hierarquização. Acho muito interessante este exercício de, no olhar, desierarquizar, desordenar as coisas. O que é pequeno, o que é uma vibração pode constituir-se como a coisa mais importante, singular. A coisa mais ordenada que há é a arte naïf. É tudo nome e números, uma descrição com uma gramática muito simples. Nela sei o que é o adjectivo, o substantivo, o que é verbo. Na minha não sei, toda a ordem gramatical perde-se um bocado".

A figura humana, e com ela um conjunto de questões (psicológicas, sociológicas, antropológicas), está ausente das telas de João Queiroz. Restam apenas o corpo do próprio artista e o do espectador diante da pintura e do desenho. O outro, a existir é a natureza. "A partir dessa noção do corpo, sentimos que partilhamos alguma coisa com a natureza, que há algo de imanente. Que fazemos parte da mesma matéria. Ao mesmo tempo ela dá-nos uma certa noção de alteridade. Isso também acontece com as pessoas. Sentimos que têm a ver connosco, mas sentimos que são o outro".

Há telas pequenas, outras com escalas maiores que permitem que o corpo vá de um lado ao outro. E pressentem-se dinâmicas diferentes do gesto, às quais correspondem olhares e aproximações diferentes. "Silvae" é uma exposição de pintura e desenho no século XXI. O que pode ela dizer a um mundo abatido sob imagens, ecrãs, pixéis? O que lhe pode oferecer? João Queiroz sorri entusiasmado e responde: "Certa pintura oferece uma aproximação à imagem mais comprometida com o corpo. Pode enriquecer a mundividencia das pessoas, permitir-lhes retomar o gosto pelo acto de ver".

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