A reclusão de Raduan Nassar acaba onde começa o fascismo

Um dos maiores escritores brasileiros vivia retirado da vida pública há três décadas, dedicado à agricultura numa quinta no interior de São Paulo. A chegada de Temer e a ameaça do autoritarismo de Bolsonaro obrigaram-no, porém, a tomar partido, “dê no que der”.

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Raduan Nassar apelida, sem contemplações, Bollsonaro de “fascista" DR

Enquanto aquece pacientemente a água para o café, recusando toda e qualquer ajuda, Raduan Nassar lança um aviso: “Não sou filiado em nenhum partido político, mas tenho de me posicionar.” “Todos temos”, acrescenta rapidamente. Não é fácil definir Nassar. Não foi com um escritor que conversámos – há décadas que deixou de o ser, insiste. Não é um especialista, nem professor, nem jornalista ou analista. O mais correcto seria apresentá-lo como um agricultor reformado. E um brasileiro apreensivo e, aos 82 anos, incrédulo com o que o rodeia. Quem o conhece minimamente sabe que odeia a exposição pública, mas o conturbado momento que o Brasil tem atravessado obriga-o a deixar a sua confortável solidão.

Nassar recebe o PÚBLICO numa manhã soalheira de sábado, na sua casa em Vila Madalena, um bairro de ruas limpas e bem cuidadas de São Paulo, conhecido pela cultura boémia. Parece um refúgio de calmaria no ritmo alucinante do trânsito e do barulho da megametrópole, mas Nassar diz que o barulho de bares e restaurantes próximos o incomodam. A busca pela reclusão parece ser uma constante na biografia de Raduan Nassar.

Em 1984, com 48 anos, e depois de dois livros publicados e aclamados, Nassar anuncia numa entrevista à Folha de São Paulo que iria abandonar a escrita e dedicar-se à agricultura, apanhando o país de surpresa. E foi isso que fez nas três décadas seguintes, depois de comprar uma quinta chamada Lagoa do Sino, no interior do estado. Para trás ficava uma passagem pelo jornalismo, no Jornal do Bairro, que fundou com o irmão. O pendor era claramente de esquerda, o que, em plena ditadura militar, valeu a Nassar duas chamadas pelos serviços de informação. “Felizmente não aconteceu nada de grave”, lembra.

Nassar deixou também uma obra curta, mas intensa. Bastaram-lhe dois romances para que fosse elevado ao panteão literário brasileiro, ao lado de Jorge Amado, Guimarães Rosa ou Clarice Lispector. Em 1975, publicou Lavoura Arcaica (Companhia das Letras), a história de um jovem que foge da casa da família atormentado pela paixão que sente por uma das irmãs. No ano seguinte recebe o prestigiado Prémio Jabuti e o prémio Coelho de Neto, da Academia Brasileira de Letras. Em 1978, sai Um Copo de Cólera (Companhia das Letras), um curto romance que mostra a progressão de uma discussão entre um casal, da perspectiva do homem.

Tudo, menos literatura

A pena de Nassar não foi mais usada desde então – foi apenas publicada em 1995 Menina a Caminho (Companhia das Letras), uma compilação de contos. A sua vida passou a ser dedicada à terra, às sementes, ao ciclo do sol e das chuvas, aos pomares e às colheitas. É quando fala sobre a quinta que os seus olhos mais se acendem. A literatura foi outra vida, que não importa mais. Quando concedeu a entrevista, Nassar apontou apenas uma regra: que se fale de tudo, menos dos seus livros.

Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais interventivo na vida pública, encarnando um crítico feroz do processo de destituição de Dilma Rousseff, da prisão de Lula da Silva e da governação de Michel Temer. Em Fevereiro do ano passado, quando foi receber o Prémio Camões – cuja entrega o surpreendeu – fez um discurso duríssimo contra o “Governo repressor” de Temer. Um Governo “contra o trabalhador, contra aposentadorias criteriosas, contra universidades federais de ensino gratuito, contra a diplomacia activa e altiva de Celso Amorim” [ex-ministro dos Negócios Estrangeiros de Lula], afirmou. O ministro da Cultura, Roberto Freire, utilizou o seu discurso em seguida para responder às críticas de Nassar, chamando-o de “adversário político”, ouvindo vaias do público.

Na altura, Jair Bolsonaro, o candidato de extrema-direita que pode estar perto de se tornar no próximo Presidente do Brasil, estava longe de dominar a discussão pública, como acontece hoje. Nassar diz que “o Governo de Temer foi desastroso” e que houve políticas que podem ser consideradas de “lesa-pátria”, como a abertura da exploração das grandes reservas de petróleo e gás no litoral do Brasil, o chamado “pré-sal”, à iniciativa privada. “Mas o que pode vir aí é ainda pior”, afirma, referindo-se a Bolsonaro, que apelida, sem contemplações, de “fascista”.

Um dos principais receios de Nassar são os planos de Bolsonaro para as instituições de ensino superior, que diz poderem passar pela “privatização de universidades públicas”. O programa do candidato do Partido Social Liberal promove uma grande redução das despesas públicas e, embora não refira directamente a privatização de universidades, sugere “parcerias com a iniciativa privada” e o desenvolvimento de “novos produtos”.

Para Nassar, trata-se de uma questão pessoal. Em 2010, decidiu doar a sua quinta à Universidade Federal de São Carlos, para que servisse como um dos campus da instituição. Na altura, as políticas de Lula da Silva para o ensino superior deram-lhe alento para a decisão.

“Durante o Governo do Lula, quando o [actual candidato à presidência pelo Partido dos Trabalhadores, Fernando] Haddad era ministro da Educação, ele fez uma verdadeira revolução. Foram admitidos estudantes negros, havia quotas para indígenas”, lembra com entusiasmo. Com Bolsonaro chega a incerteza sobre o seu projecto. “Se tentarem privatizar, terei de entrar com um advogado, porque isso é inaceitável”, afirma.

“Massa dos governados”

Em Um Copo de Cólera, a certa altura, uma das personagens declara: “Ofendido e humilhado, povo é só, e será sempre, a massa dos governados.” Recordamos essa passagem e de imediato Nassar dá conta da prevaricação. “Estava proibido de falar sobre literatura.” Após alguma insistência, admite que continua a acreditar nisso, mas faz uma importante ressalva, com inevitáveis ressonâncias nos dias de hoje. “Há situações diferentes. O povo sendo governado num certo regime ou noutro regime, eles não coincidem. Tudo depende de como se é governado.”

Ao longo de toda a conversa, Nassar pontua as suas respostas com demonstrações de incredulidade pelo que se passa no seu país. “É inacreditável”, diz em várias ocasiões. Custa-lhe cada vez mais a ler, mas tem acompanhado de perto todos os episódios da campanha eleitoral. “Diariamente vou à Internet para saber o que tem acontecido”, conta. Mas não se limita a assistir.

Tem escrito artigos para jornais e participado em acções de oposição ao ex-capitão do Exército Bolsonaro. “Nunca me demiti”, afirma. Defende que em tempos ásperos, não são apenas os escritores – algo que não se considera – ou os intelectuais que devem assumir uma responsabilidade de denúncia. “Qualquer cidadão tem de ter as suas posições, mesmo correndo riscos.”

Acredita que a vitória de Bolsonaro irá trazer “perseguição” a quem pensa de forma diferente, mas não pretende desviar-se do seu activismo. “Vou continuar com as minhas posições. Dê no que der”, acrescenta. Manifesta, porém, muitas dúvidas sobre a possibilidade de mudar a opinião dos apoiantes de Bolsonaro através do diálogo. Falou com um sobrinho que se inclinava para o candidato de extrema-direita que lhe respondeu dizendo que “vai ver”. “Esse 'vou ver' já estava decidido no Bolsonaro”, conclui.

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Nassar não tem receio de se assumir, na verdade defende que todos os cidadãos o devem fazer. Mas o enigma sobre aquilo que o define mantém-se. Jornalista, escritor, agricultor, activista político. No final da entrevista aproveita o sol para descer ao passeio em frente ao prédio. Detém-se na árvore mais próxima: “É uma pitangueira”, informa. Tira três frutos e prova-os. “Ainda não estão maduros.”

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