Como a esquerda brasileira decidiu perder as eleições

O PT e a esquerda copiaram os erros dos democratas americanos no seu confronto com Trump. A sua estratégia eleitoral foi suicidária.

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1. Jair Bolsonaro ainda não foi eleito mas já venceu a campanha eleitoral. A uma semana do voto, tem uma vantagem de 18 pontos nas sondagens. Um indicador decisivo é a taxa de rejeição. Enquanto a de Bolsonaro permanece estável, nos 41%, a de Fernando Haddad subiu para 54%. Só um cataclismo poderia mudar o quadro. “Trinta anos após a promulgação da Constituição de 1988, a descida do Brasil à democracia iliberal não é inevitável. Mas é assustadoramente possível”, escreve na revista Valor Econômico Michael Reid. Redactor da The Economist, Reid acompanha há muitos anos a política latino-americana. Não é um catastrofista.

Na semana passada, escrevi sobre a possibilidade de um regime autoritário no Brasil. É necessário olhar, agora, o confronto pelo lado da esquerda, que demora a compreender a mudança de época em que vivemos (ver V. Belanciano, PÚBLICO, de 14 de Outubro). Repito que é muito difícil explicar o que se está a passar e, menos ainda, antecipar o futuro. Mas é possível identificar alguns dos mecanismos em acção.

 

2. O primeiro é a polarização política, que se traduziu na batalha entre os dois candidatos com a mais alta taxa de rejeição. Não se trata de uma normal polarização eleitoral mas, na expressão do politólogo André Singer, de uma “polarização destrutiva”, em que se visa aniquilar o adversário. A polarização e a radicalização jogaram a favor de Bolsonaro.

Quem iniciou a polarização, como método de vencer eleições, foi o Partido dos Trabalhadores (PT), com a sua estratégia do “nós ou eles”. Esta estratégia foi repetida após a destituição de Dilma Rousseff e acentuada com a prisão de Lula. Para impor a candidatura do líder e manter a hegemonia dentro da esquerda, o PT fez uma política de “terra queimada”, dando prioridade à marginalização das outras forças de esquerda. Como resultado, Haddad ficou sem margem de manobra para fazer alianças. A palavra de ordem “Lula é Haddad, Haddad é Lula” foi um sucesso para operar a transferência de votos de um para o outro. Mas, eleitoralmente, foi suicidária. Simultaneamente, o “improvável” Bolsonaro saía do seu gueto eleitoral e era transformado em candidato do establishment económico e político, porque assumiu o antipetismo de forma radical e mostrou ser o mais apto para bater Haddad. Foi o mesmo antipetismo que fundiu a direita tradicional e a extrema-direita numa frente ideológica designada por “nova direita”.

 

3. A polarização vem associada à “guerra cultural”. Assinala Fernando Schüler, professor de Filosofia Política: “O clima de ‘guerra cultural’ é um ecossistema no qual um candidato populista e conservador, com as características do Bolsonaro, funciona bem. (...) É isto que está acontecendo agora no Brasil. Esta é uma retórica que mobiliza os militantes, os intelectuais, os activistas do PT, de modo geral, mas ela não fala com o eleitor menos politizado. Ela não busca votos do outro lado.”

A mesma nota é reforçada pelo americano Brian Winter, director da revista Americas Quarterly e que seguiu de perto a campanha de Bolsonaro: a esquerda brasileira repetiu os erros da campanha democrata contra Trump. Escreveu no Folha de S. Paulo: “O que aconteceu nos Estados Unidos? Basicamente, Hillary e os seus partidários centraram-se tanto na oposição a Trump que se esqueceram de falar sobre as questões que importavam à maioria dos eleitores, o desemprego, a imigração e assim por diante.”

E no Brasil? “No Brasil, as pesquisas de opinião indicam que as questões mais importantes para os eleitores incluem a economia, a corrupção e o crime. A verdade é que Fernando Haddad e o PT têm enorme dificuldade para lidar com as três.” Por outro lado, o PT não fez autocrítica dos seus erros. “Isso é pedir muito, dada a recente insistência do partido quanto a narrativas de perseguição e nostalgia. Talvez seja impossível. Mas o futuro da democracia brasileira pode depender disso.” Winter escrevia uma semana antes da votação da primeira volta.

 

4. Esta campanha foi travada num terreno difícil para a esquerda, as novas regras da comunicação de massas. A radicalização deve muito aos milhares de grupos de apoio a Bolsonaro no WhatsApp, onde as fake news proliferaram em progressão geométrica, transformando-se num veículo de apelo ao autoritarismo (ver João Salaviza, PÚBLICO de ontem). A isto se juntaram campanhas de desinformação em escala industrial. Os jornais passaram a ter colunas de denúncia: “Isto é FAKE.”

A campanha feminista do #EleNão foi qualificada por analistas como “um tiro no pé”, porque, subliminarmente, promovia a imagem de Bolsonaro. Mas deu também lugar a uma megaoperação de intoxicação, descrita pelo filósofo Vladimir Safatle.

“Vimos o que aconteceu com os actos do sábado retrasado [29 de Setembro]: grandes manifestações populares que ocuparam as ruas do Brasil e, de repente, foram anuladas. Ninguém estava sabendo exactamente o que aconteceu. Justo após essas manifestações, Bolsonaro teve um salto nas pesquisas. Depois, fomos entendendo. Com uma organização impressionante, uma rede muito vasta de circulação de imagens, profissionalmente constituída, tentou anular o acto pela construção de um evento falso no lugar. Faziam circular fotos que não tinham nada a ver com aqueles protestos, com o objectivo claro de denegrir suas propostas. Conseguiram anular um evento de rua por meio de uma mobilização virtual.”

As redes sociais são a fonte de informação da grande maioria dos brasileiros. A televisão e os jornais contaram pouco nesta campanha. Argumento? “A mídia mente.”

 

5. O Brasil não é uma ilha. A polarização é uma tendência quase universal, que acompanha o “descrédito da política”, as correntes anti-sistema, a fragmentação dos partidos tradicionais. As “guerras culturais”, sobretudo as ligadas à “ideologia do género” e às políticas identitárias, generalizam-se. Se a nostalgia do passado alimenta as ideologias de direita, também a esquerda está mentalmente bloqueada. “Esta esquerda não tem nenhuma visão a oferecer e, além disso, não a pode ter porque o modo como pensa o impede”, diz Mark Lilla, um cientista político americano.

Que virá a seguir no Brasil? Filipe Campante, um cientista político que ensina nos EUA, não é optimista. “Primeiro, o populista vitorioso não tem incentivo a buscar a convergência, mas sim a inflamar ainda mais a polarização. (...) E mais preocupante é saber que o Brasil está muito menos preparado do que os EUA para absorver o choque político que se avizinha.”

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