Bombeiros criticam estratégia de combate ao incêndio de Monchique

Associações falam numa “desorganização total” do combate, de operacionais mal distribuídos, de bombeiros à espera das chamas, da ausência do fogo como ferramenta de combate e da falta de uso de retardantes

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Ex-comandante nacional Gil Martins diz que uso de meios aéreos em grandes incêndios não é eficaz. LUSA/MIGUEL A. LOPES

A estratégia de combate ao incêndio que devastou cerca de 20 mil hectares em Monchique nos últimos dias esteve sob o fogo cerrado dos próprios bombeiros. Duas associações que os representam, uma de voluntários e outra de profissionais, criticam de forma aberta a estratégia de combate ao incêndio que está activo desde sexta-feira e que já se alastrou a concelhos vizinhos. Falam em “desorganização total” do combate, em operacionais mal distribuídos, de bombeiros limitados a ficar à espera do avanço das chamas, da ausência do fogo como ferramenta de combate e da falta de líquidos retardantes na água lançada pelos meios aéreos.  

O principal alvo das críticas é o comandante distrital da Autoridade Nacional de Protecção Civil, Vítor Vaz Pinto. Não estranha, por isso, que o ministro da Administração Interna tenha anunciado que, ao quinto dia de operações, o combate ao fogo de Monchique passe a ser assumido pelo comando nacional da Protecção Civil. Em conferência de imprensa, a segunda comandante nacional, Patrícia Gaspar, negou a existência de falhas e falou numa “questão de contingências da operação”, sublinhando que o incêndio se revelou de forma agressiva desde o início.

O presidente da Associação Portuguesa de Bombeiros Voluntários, Rui Silva, garante que tem recebido uma “chuva” de contactos de colegas, revoltados com a situação. “Tem sido unânime a opinião das populações que não encontram os bombeiros quando precisam. E muitos voluntários que estão lá sentem que podiam fazer muito mais”, queixa-se o dirigente, que responsabiliza o comandante distrital por uma distribuição errada dos meios. “Há casos em que colocam uma equipa num ponto e deixam-na horas à espera até decidirem para onde vai”, exemplifica. “Noutros casos”, diz Rui Silva, “ficam muito tempo na estrada à espera do fogo”.

Estranha, igualmente que, num incêndio desta dimensão, não se use o fogo como ferramenta de combate, queimando locais estratégicos que sirvam de barreira à progressão do incêndio ou usando as chamas contra a frente do incêndio. “Os relatos que temos indicam que não está a ser usado o fogo para combater o incêndio”, critica Rui Silva.

O presidente da Associação Nacional de Bombeiros Profissionais, Fernando Curto, (ANBP), fala de “má coordenação de homens e meios” e uma “desorganização total em que ninguém se entende”. Por isso, espera que, com a passagem do combate para o comando nacional, “tudo possa mudar”. O presidente da ANBP não percebe porque é que as aeronaves não despejam sobre as chamas uma mistura de água e líquidos retardantes e defende que, no terreno, se deveria estar a desbastar vegetação para que os sapadores possam ter acesso às chamas

“Assistimos a um incêndio na serra de Monchique que envolve mais de um milhar de operacionais, mais duas centenas de veículos, 13 aeronaves e um número considerável de máquinas de arrasto e não se consegue controlar fogo ao fim de cinco dias? A explicação só é uma: o combate está a ser mal feito”, afirma. “A estratégia e a táctica estão erradas”, acrescenta ao PÚBLICO.

Bastante mais contido é o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, Jaime Marta Soares, que apenas admite que “as coisas não seguiram os melhores caminhos”. As análises ficam para mais tarde, afirma. "Este deve ser um momento de serenidade". 

O engenheiro florestal Paulo Fernandes, professor na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, diz que um incêndio desta dimensão só se combate com máquinas de rasto e fogo táctico, que criam barreiras à progressão do fogo. E que a janela de oportunidade do combate está quase reduzida ao período da manhã, em que as condições meteorológicas são mais favoráveis.

Gil Martins, coordenador da licenciatura em Engenharia de Protecção Civil, do Instituto Superior de Educação e Ciências de Lisboa, e antigo comandante nacional, concorda. “O esforço devia concentrar-se entre as 5h e as 10h da manhã. Usar os recursos durante o dia, com condições extremas, é esgotar os meios”, argumenta, reconhecendo que isso é muito complicado de explicar às pessoas. Gil Martins acredita que o uso de meios aéreos num fogo desta dimensão não é eficaz e não percebe por que estiveram no Algarve mais de uma dúzia de aeronaves, parte das quais nem tiveram condições de segurança para actuar, devido ao intenso fumo. “Face ao poder calorífico deste incêndio, a água nem sequer chega ao chão. É como apagar uma lareira com uma colher de chá”, afirma.

Para usar as máquinas de rasto, que permitem criar linhas descontínuas no terreno, lembra Paulo Fernandes, é preciso prever o comportamento do fogo, já que é preciso tempo para criar essas faixas de contenção. E nem sempre existe esse conhecimento. Patrícia Gaspar insistiu que as máquinas de rasto, neste momento num total de 25, estão presentes no terreno desde o primeiro momento, mas admitiu que a estratégia de utilização está a ser alterada. Estes equipamentos, adiantou, estão a ser agrupados para permitir uma actuação “mais musculada”.

Outro especialista no comportamento do fogo, o professor Xavier Viegas, da Universidade de Coimbra, acompanha a crítica de Fernando Curto sobre a necessidade de utilizar produtos químicos na água lançada sobre o fogo. "Para evitar reacendimentos, utilizam-se técnicas como o emprego de produtos químicos", disse em declarações à Lusa, explicando que esses produtos se misturam com a água que é lançada pelos meios aéreos permitindo consolidar o rescaldo. Patrícia Gaspar desvalorizou esta questão e garantiu: “Estamos a usar a estratégia que mais se adequa a cada momento”.

Xavier Viegas criticou também a falta de prevenção, lembrando um projecto de 2006 que desenhou uma rede primária de faixas de contenção. A ideia era criar faixas em zonas estratégicas da floresta, cortando por completo a vegetação ao ponto de criar zonas com 125 a 150 metros de largura. Na sequência dos incêndios de 2003 e de 2005, diz, o Algarve foi considerado uma zona prioritária de prevenção e, "pelo menos desde 2006, o Estado tem um projecto de faixas de redes primárias" para toda a região. No início, afirma, foram executadas algumas faixas, mas a determinada altura o plano passou para as mãos das autarquias e "não houve, da parte dos municípios, sensibilidade para completar esse plano".

No caso do incêndio de Monchique, o comando nacional da Protecção Civil tomou as rédeas da situação apenas no quinto dia de operações, bastante mais tarde do que no caso de Pedrógão Grande, em que o segundo comandante nacional ficou à frente do combate logo no primeiro dia. Contudo, nessa altura, já tinham morrido a maior parte das vítimas fatais deste incêndio. E apesar desse responsável ter estado quase 23 horas no comando do incêndio, nos dias seguintes, a Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC), entregou a liderança das operações a três comandantes distritais, incluindo o próprio Vítor Vaz Pinto. Com Luciano Alvarez e Idálio Revez

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