Dos gigantes discretos

Vi nesse dia mais gente a sair dos carros com um ar meio perdido, e uma senhora que chorava compulsivamente nos braços do marido como se lhe tivesse morrido uma filha, ou uma mãe ou a melhor amiga

Foto
Tom Belte/Flickr

Há uns meses, dois velhos amigos reencontraram-se em Irbit, à beira do Nitsa, jantaram na casa dum deles e beberam noite adentro. Discutiram literatura animadamente até que se meteram na discussão de qual será a superior forma de expressão literária, a prosa ou a poesia. A coisa aqueceu com, imagino eu, Dostoievskis a digladiarem-se com Akhmatovas, Tolstois com Maiakovskis, até que o da poesia perdeu a paciência e esfaqueou mortalmente o da prosa. A história é verdadeira e não tem graça nenhuma, mas eu desconsigo (como se diria em Luanda) conter um meio sorriso ao reconhecer nela os meus russos.. rudes, loucos, romanticamente apaixonados pelas suas letras.

Em Portugal não sofremos desta maleita, em Portugal não amamos a poesia, que leva cronicamente à falência os líricos que a tentam editar, e que muito poucos lêem; em Portugal amamos os poetas, o que já não é nada mau.

Estávamos numa bicha parada de auto-estrada, debaixo dum sol de fundir pedra, quando morreu a Sophia. A TSF parou a emissão para nos contar a fatalidade e nós saímos porque o decrépito Panda da minha mulher se tornou subitamente sufocante, calados numa dor que não sendo, se fazia também nossa. Vi nesse dia mais gente a sair dos carros com um ar meio perdido, e uma senhora que chorava compulsivamente nos braços do marido como se lhe tivesse morrido uma filha, ou uma mãe ou a melhor amiga; nesse dia comecei a compreender a relação que nós temos com a poesia, que mais de amor à poesia, se faz dum muito específico amor aos poetas.

Partilhamos com todos os outros o óbvio da relação entre um povo e os seus poetas: a gratidão (entrelaçada de inveja) pela capacidade que eles têm em dizer com mais graça e beleza aquilo que todos sentimos, fazendo-nos sentir outra vez, apenas pela magia que as palavras ganham nas mãos deles. Aquilo em que nos acho diferentes, se calhar num subtil chauvinismo, vem do que senti no Porto no Verão de 2005, logo a seguir à morte do Eugénio, com um luto que se estendia muito além dos leitores do bom filho da Póvoa de Atalaia.

Heróis discretíssimos

Se calhar é por, num tempo de tantas vedetas de coisa nenhuma, de tanta fama espúria, os poetas continuarem a ser estes heróis discretíssimos, que vagueiam entre nós sem demonstrações exteriores de génio. Quem se cruzar hoje com a Adília Lopes numa rua de Lisboa, terá a mesma sensação que teria ao cruzar-se com Gedeão há 50 anos, com Pessoa há 80 ou com Cesário há 130; que é nenhuma de especial; nada no seu aspecto grita os mundos que lhes vão dentro, e isto tem de ser algo que cai no goto ao povo trombudo, gentil e falsamente sério que somos.

Ou talvez seja só a compreensão de que, se é precisa uma certa loucura para se insistir em se ser português em Portugal, para se ser poeta em Portugal tem de ser necessária uma dose cavalar. E daí gabarmos em vez de chorarmos o posto na conservatória do Pessanha, as traduções comerciais do Pessoa, as aulas de físico-química do Gedeão, as consultas do Torga, o funcionalismo do Eugénio; como se a parte vulgar da vida deles se constituísse em vaso comunicante com as nossas, tendo assim as nossas vidas vulgares uma voz nas vozes extraordinárias que são as deles.

O nosso querido Cesariny dizia que lhe batiam palmas e a seguir o mandavam sozinho para casa “Isto é a glória literária à portuguesa!”, e com razão, em Portugal os vivos pagam no descuido o amor que votamos aos mortos; mas não é por não sabermos que connosco nas ruas se cruzam discretos gigantes, que mordem como quem beija, que têm garras e asas de condor.

Sugerir correcção
Comentar