Carta de Amor ao Meu Chão

Nós somos lindos! Podemos ser desconfiados e engenhosos, como são sempre os pobres; incultos e submissos, como é sempre quem deixou de ser súbdito ontem; insaciados e queixosos, como são os humanos todos...

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Pedro Ribeiro Simões/Flickr

Ó povinho extraordinário que inventámos entre a meseta e o mar. É espectacular como não nos amamos, não nos respeitamos, não nos orgulhamos do que somos; como não temos a vaidade dos castelhanos, o chauvinismo dos franceses, a serenidade dos italianos, a superioridade dos anglos.

Não devemos nada a ninguém (muito menos aos tartufos dos banqueiros alemães) mas só temos soberba para aqueles com quem devíamos dobrar a língua: os brasileiros e africanos, a quem exibimos uma europeização de anteontem, como se não lhes devêssemos a gratidão de nos chamarem irmãos depois de 500 anos de colonização, de escravatura, de exploração para além do que as palavras dizem.

Ainda falamos dos “Descobrimentos” como se a idade de ouro da nação não fosse hoje, com a fome a ser vencida pela primeira vez em 1000 anos de história e o destino da terra nas mãos de toda a gente, por mais apáticos que nos achemos. Continuamos a emprenhar de ouvido com toda a novidade caída de Paris e (agora) Nova York, a planger a pequenez do país que nem um cartógrafo salazarista, a suspirar neologismos canhestros para mostrar que o português que desaprendemos não foi substituído pelo “english” que ainda não sabemos.

Continuamo-nos a descrever como chico-espertos, como se os trafulhas do norte da Europa fossem melhores. Comparamos o canalizador tuga que não passa facturas ao banqueiro ianque que exaure estados inteiros como se fosse tudo a mesma coisa e castigamo-nos com um “só temos o que merecemos”. Mas afinal o que é que nós merecemos?

O que nós merecemos é um bocadinho de amor-próprio: não são só as esplanadas de Lisboa que são as melhores do mundo, caramba! Sermos um povo trombudo e ensimesmado ainda é como o outro (não podemos todos sair espanhóis ou brasileiros); que a vida é dura não vou ser eu a negá-lo (venho de avós que viveram a fome, pais que trabalham na reforma e neste momento sou emigrante); que ainda há muito por fazer para uma existência colectiva decente não discordo, mas não deitemos o bebé fora com a água do banho.

Chega da chaga da bipolaridade nacional: três minutos de vangloria grupal porque o Ronaldo engata uma modelo seguidos de 3 anos de autoflagelação colectiva porque um farsante qualquer em Bruxelas diz que somos maus meninos. Estamos sempre prontos a acreditar no pior que dizem de nós, por mais gritante que seja a mentira... mas isto é maneira de viver?!

Mas quem é que nós queríamos ser? Espanhóis, que ainda estão para decidir quem são?! Italianos, que com a 8ª economia do mundo conseguem ter uma vida comum ainda mais surreal que a nossa? Franceses, que ao fim de 5 repúblicas e 15 constituições têm um partido fascista com um quarto dos votos? Ingleses? Suecos? Porque não neozelandeses ou marcianos?!

Porque é que nos é tão difícil a autoestima? Foi o D. Carlos com a “chafarica”? O Botas com o “destino de pobreza”? O Aníbal com a “falta de produtividade”? O Pedro e o Paulo com o “viver acima das nossas possibilidades”? Mas ainda alguém acredita nestes passarões?!

Nós somos lindos! Podemos ser desconfiados e engenhosos, como são sempre os pobres; incultos e submissos, como é sempre quem deixou de ser súbdito ontem; insaciados e queixosos, como são os humanos todos... mas temos mundos neste nosso rectângulo capazes de surpreender, mais do que “a Europa” ou quem sejam os transitórios senhores do mundo de hoje, capazes de nos surpreender a nós próprios.

“É pouco provável” grunhes tu ó tuga trombudo... pois é, já das vezes anteriores era e olha o que o teu vulgacho fez às probabilidades.

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