Da Beleza do Vulgar

Pego no envelhecido precoce bigodudo a dois assentos do meu: aliança, fato cinzento barato, gravata torta, sapatos partidos, “attaché-case” fora de moda, óculos a descer o nariz, melena rala e em desalinho, cenho carregado, ar cansado

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Jason Lee/ Reuters

Nunca me chateio nos transportes públicos, mesmo sem leitura ou música transportáveis, divirto-me a ver as pessoas. O normal é-me interessante, o vulgar entretém-me: vejo a malta a ir ou a vir do trabalho, escolho um que me salte à vista e invento-lhe a história; faço-o desde puto, é em mim um vício mais entranhado que o tabaco, o álcool e a bica juntos; construo a minha caderneta de cromos, ao mesmo tempo reais e mentais, ao mesmo tempo vulgares e extraordinários; como são as pessoas todas.

Pego no envelhecido precoce bigodudo a dois assentos do meu: aliança, fato cinzento barato, gravata torta, sapatos partidos, “attaché-case” fora de moda, óculos a descer o nariz, melena rala e em desalinho, cenho carregado, ar cansado: imagino-lhe a mulher velha e feia mas amorosa, o patrão mesquinho no trabalho burocrático, os filhos ligados aos brinquedos da modernidade, os cigarros proibidos pelo cardiologista que ele fuma nos passeios do cão, os cálculos renais que lhe envenenam o urinar, o desprezo calado que tem pelo namorado dread-de-aviário da filha, a queda por duchesses carregados de creme e fios de ovos e por adolescentes asiáticas da net, a encadernada colecção de moedas do tio preferido que ele não consegue folhear sem uma lágrima interna, o humor canalha com que toca no stop das escadas rolantes do metro, o embevecimento platónico com a moça que serve no café próximo do trabalho, a maneira como se descalça por debaixo da secretária para aliviar os calos, as horas de almoço jejuadas que passa num banco de jardim (olhos fechados ao sol), os palavrões que há mais de 20 anos escreve nos boletins de voto, a inevitável associação carinhosa com o cheiro a óleo decorrente do pai operário, o sonho do Morgan Plus 8 que ele sabe que nunca concretizará, aquele disco mais que tudo do Michel Delpech que ele põe a tocar quando tem a casa só para ele e para o cão, quando bebe uns gins tónicos a meio dos dias de fim-de-semana, esquece o trabalho e os putos e o Benfica e a austeridade e os cabrões no poder, e se concentra em surpreender a mulher chegada da praça com uma despropositada vontade de fazer amor de janelas abertas, na sala de estar ou na cozinha, a que ela responde falsamente tímida “Ó Armando nós lá temos idade para isso...” mas a que acaba por aceder entre risinhos da adolescente que ainda é, algures lá dentro.

E desço do 746 sabendo que a história daquele Armando, não sendo esta há de ser uma igualmente interessante. Porque sei dum sem-abrigo ao pé de Sete Rios que pratica karaté inventado com gritos à Bruce Lee; doutro que às oito da manhã, de pacote de vinho branco na mão e farfalhudas suíças vitorianas, vai para as paragens de autocarro assediar os produtivos da sociedade com uns gargalhados “Vais trabalhar?! Bem feita!!!”; porque a minha padeira em Benfica tem um muito específico sentido da moda; porque conheci um velho camponês beirão que, com um canivete e toros de pinho, fazia belas esculturas só para as atirar ao lume logo que acabadas; porque a filha da minha porteira em Paris toca piano; porque qualquer uma das quatro irmãs da minha avó Adília dava um romance inteiro do Lobo Antunes.

Porque sei o quanto as pessoas vulgares são extraordinárias, quão mais bonitas que os plastificados sorridentes, de copo na mão e calças encarnadas, dos cocktails das revistas cor-de-rosa. Deve ser por isso que saí antropólogo, de certeza que é por isso que o tédio nunca me tenta e o desespero raramente me morde.

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