Marias na Escuridão

Ficávamos, a minha irmã e eu, sempre admirados quando víamos pais (da geração do nosso) que não entravam na cozinha, irmãos que tinham as camas feitas pelas irmãs, mesas levantadas exclusivamente pelas mulheres, maridos com vergonha de estender a roupa à vista dos vizinhos

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Roberto ORTEGA /Flickr

Vi há uns dias uma pequenina reportagem da SIC sobre a Maria da Luz, uma senhora de 61 anos que, ao fim de 38, se libertou dum casamento marcado desde o início pela mais selvática e incompreensível violência doméstica; a peça tem 8 minutos e eu ainda estou com a alma amarfanhada.

Mas organizemo-nos: eu sou um europeu branco, heterossexual e com mais duma dúzia de anos de escola, faço portanto parte da minoria que já nasceu com o cu virado para a lua. Em cima disto cresci num ambiente em que não havia desnível de autoridade, de respeito devido ou de monopólio da violência entre pai e mãe, como nunca houve diferença entre o que se esperava do filho e o que se esperava da filha; foi muito mais tarde que a minha irmã e eu nos apercebemos que isto não era assim em todas as casas, se calhar nem sequer na maioria delas.

Ficávamos, a minha irmã e eu, sempre admirados quando víamos pais (da geração do nosso) que não entravam na cozinha, irmãos que tinham as camas feitas pelas irmãs, mesas levantadas exclusivamente pelas mulheres, maridos com vergonha de estender a roupa à vista dos vizinhos. De início achávamos que o resto da realidade carecia de explicação (perguntar aos nossos pais dava uma palestra de direito romano com ele e impropérios sobre “gente subdesenvolvida” com ela) mas eventualmente lá percebemos que a anormalidade a precisar de explicação éramos nós, e não todos os outros. Daqui foi fácil perceber quem era a heroína desta história: a nossa avó paterna.

Ainda hoje, para o fim da festa na aldeia dos meus avós, me aparece um ou outro octogenário avinhado com a inevitável introdução “... A tua avó era uma casa!” seguida duma nova velha história da titânica mãe do meu pai. Porque na Beira Baixa dos anos 50 e 60 era realmente raro uma mulher não só não aceitar a emigração do marido, como vestir luto por um vivo, criar dois filhos sozinha e ao mesmo tempo impor um respeito social pela sua pessoa que continua a reverberar hoje, anos e anos após a sua morte. Esta camponesa sem um dia de escola, ferozmente independente, que sustentou uma família monoparental com o que tirava do chão e que aos oitenta anos ainda subia às oliveiras para as podar, é a mulher no nosso passado que nos inoculou, ao meu pai e a mim, contra o fantástico medo que os homens deste país continuam a ter duma mulher forte.

Porque não nos enganemos por um segundo: o que gera as agressões às Marias da Luz deste mundo, os homicídios por amantes despeitados (33 em Portugal, só no ano passado), a falocracia instituída e inegável apenas na diferença salarial média entre sexos (17,5% na nossa civilizada União Europeia), a misoginia feroz e desenvergonhada de todos os monoteísmos; é o medo.

Medo de mulheres com cabeça, tronco e membros, de mulheres com sexualidade e intelecto, de mulheres com opiniões e ideias e agência que ultrapassem a esfera privada da cozinha; medo de perder o controlo, medo de se ser menos homem, medo de se parecer fraco, medo de admitir que o que nos separa não é assim tanto, medo até de se ter medo. É deste imenso pavor que nascem as santas e as putas que continuam a poluir a mente dos meninos, desta fantasia da superioridade da testosterona que se expele todo o machismo vazio, sexismo atrasado e transida homofobia que nos envenena a vida a todos, homens e mulheres. É neste negro horror que se criam estas Marias da escuridão e é este velho terror que temos de desaprender porque, como nos ensina a Maria da Luz na reportagem, “liberdade é viver sem medo”.

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