O divino problema

Digo que sou agnóstico, que é uma maneira bonita de dizer “que não sei”, e gosto porque ao mesmo tempo me permite viver livre de autoridades arbitrárias e morrer curioso

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Darren Staples/Reuters

Deus era um problema que eu tinha resolvido. Sou um ex-católico baptizado, comungado, crismado e antigo acólito; curou-se-me a moléstia no dia em que um padre da Opus Dei (“a Obra”, como eles gostam de dizer) me explicou como os bebés por baptizar não iam para o Céu por causa do pecado original, e eu concluí que andamos a brincar com coisas sérias.

Não virei ateu porque acredito na causalidade, na imensa série de causas e consequências que se sucedem, e que implica necessariamente uma causa primeira – e ao inteligente que vier com a teoria-M só tenho a dizer que para acreditar tenho de compreender, e com a física às vezes sinto a moina a sobreaquecer.

Para mais nunca inferi da crença na ciência uma antítese com o teísmo. Fico boquiaberto com os debates que se têm nos Estados Unidos, entre criacionistas que crêem numa pré-história à Flintstones e ateus que acham que acreditar na fotossíntese e ir à missa são actos incompatíveis, pensava que o Teilhard de Chardin tinha resolvido isto há 70 anos.

E de todo o modo nada disto é uma preocupação quotidiana, a minha preocupação quotidiana é existir como um ser humano decente, e para isso não preciso dum superego barbudo a vigiar-me do céu. Aliás, de todo o discurso religioso o mais insultuoso é o assumir de que precisamos duma cenoura do outro lado da morte para não sermos o lobo do homem; a virtude é a sua própria recompensa, algo evidente para todos menos para os desalmados que, tão preocupados que estão em “vencer”, não se apercebem que a vida não é um jogo.

Por tudo isto quando me perguntam digo que sou agnóstico, que é uma maneira bonita de dizer “que não sei”, e gosto porque ao mesmo tempo me permite viver livre de autoridades arbitrárias e morrer curioso. Como disse antes: Deus era um problema resolvido.

Mas depois disto tudo casei-me com uma ateia fervorosa (casou-nos a República, que nós não brincamos com coisas sérias) e eventualmente lá produzimos uma terceira alma para acabar com o sossego cá de casa. A criatura já diz coisas e está-se a preparar para começar com perguntas; e eu já ando a fruir por antecipação a carga de trabalhos que lhe vai ser explicar a crença da mãe e a curiosidade do pai, um avô mordomo da paróquia e outro mata-frades, uma avó católica progressista e outra “não-praticante”, a tia católica de Sta.Bárbara, a “madrinha” presbiteriana, a bisavó que reza o terço, o bisavô que vai à missa uma vez por ano (na festa) e fica à porta e o namorado muçulmano da vizinha... vai ser bonito.

Como somos gente civilizada para quem a tolerância não é palavrão (a mãe dela diz que só a bota fora de casa se ela sair nazi), tanto nos faz que a cria saia ateia, hindú, filha de santo, adoradora do Endovélico na serra de Sintra ou cavaleira Jedi. Aprendi a aceitar os outros com o meu querido Voltaire e um casal amigo dos meus avós, ela católica rigorosa e ele comunista ortodoxo, que todos os domingos iam de braço dado até à porta da missa, para ela entrar e ele seguir para o café, “Avante!” no bolso do casaco, lhe esperar o fim da prática e a recolher novamente pelo braço no caminho de casa.

Nada disto tem de ser um dramalhão à ianque, e a mim importa-me muito mais que ela tenha uma visão ética da existência do que uma denominação religiosa. De resto, se ela fizer muita questão, faço como o Sr. Jorge: enfio leitura no bolso e espero que acabe a catequização no café mais próximo. Sem dramas: na volta até lhe pergunto como estava Nosso Senhor esta semana.

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