As nossas bruxas não precisam de vassoura

Embevecidas pelo imaginário de massas, as nossas crianças já não conhecem os mitos da nossa tradição oral

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Henrique Matos

Não tenho nada contra o “Halloween” nas escolas, nem contra o samba nos corsos (embora ache sambar em Cantanhede algo eivado de masoquismo). Um antropólogo não se esquece que uma cultura é algo em perpétuo movimento, e por mais que ache os nossos gigantones e matrafonas mais interessantes que as bruxas puritanas ou as emplumadas dos trópicos, sei que há um interesse inerente à própria alteração dum costume, para além de que por mim, quanto mais Carnaval melhor.

Naquilo em que eu agora, depois de ser pai, me acho mais rezinga é no preenchimento exclusivo do imaginário da minha filha com Brancas de Neve alemãs, Pequenas Sereias escandinavas e Capuchinhos Vermelhos francesas, especialmente nas versões descafeínadas pós-Disney. Como é suposto eu resistir a repetir-lhe as tremendas histórias que me contavam os meus avós em noites quentes de Verão, lá entre a Beira e o Alentejo, ao cheiro do pinho, ao som dos grilos e à luz da lua (que não se acendia nada por causa das melgas); histórias aterrorizantes que qualquer pedagogo contemporâneo julgará e jurará irreversivelmente traumatizantes.

Histórias como a do avô da minha avó, que era marchante (vendedor ambulante) e se viu, certa noite, obrigado a pedir abrigo numa casa de mulher sozinha, que depois de com ele partilhar a janta, e se convencer que ele estava adormecido, se despiu na cozinha, passou o sebo das bruxas pelo corpo e saiu a voar pela chaminé. Ele, aterrorizado mas curioso, despiu-se e repetiu-lhe os gestos, para se ver a voar chaminé fora, entre mato escuro e céu estrelado, até ao "sabat" das bruxas.

No concílio presidido por um Diabo muito negro e muito feio, estavam todas as bruxas e bruxos da região, a gabarem-se das maldades cometidas: poços envenenados e pão por levedar, leite azedo de gado enviscado, chuva na eira e sol no nabal; enquanto se cruzavam de todas as maneiras proibidas pelos padres e cozinhavam crianças por baptizar numa caldeira; até que chegou a altura de render homenagem ao Malino e todos fizeram fila para lhe beijar o traseiro, o avô da minha avó incluído. Mas no último momento o meu antepassado, apavorado com a ideia do lume eterno, deu uma trinca em vez dum beijo no cu do Dianho, fazendo-o estoirar a ele e fugir aos gritos os bruxos e bruxas seus discípulos.

Ou a do tio dos vizinhos de três casas acima dos meus outros avós que, por ser sétimo filho dum sétimo filho, nasceu Lobisomem. E que todas as noites de lua cheia corria fado, transformado sem saber em cavalo branco ou toiro de olhos rubros a devastar os campos de cultura da vizinhança e a atirar com os desprevenidos para valados cheios de silvas. Fado curado por uma velha benta lá da terra, que o soube picar com uma vara com ponta de ferro, tirando-lhe o pelo de bicho e o enguiço.

Ou a da Moira Encantada, de pele muito branca e pelo muito negro, que ainda hoje canta e chora na mina de água sobranceira à aldeia; na tentativa de atrair moços casadoiros, com promessas de tesouros de ouro e de carne. Moços que a desencantem ou, pelo menos, se lhe juntem no quebranto a que a condenaram pecados antigos.

Ou os Medos que espreitam à noite a beira da estrada, essa “personificação de tudo o que é vago, desconhecido e assustador” como diria Adolfo Coelho, e que o meu pai ainda pressentia em fins de tarde escuros, na volta da escola na vila, a espiar ameaçadores entre os pinheiros penumbrentos.

Tantas, tantas coisas para contar à minha filha, tão mais interessantes que as cabaças recortadas dos ianques.

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