Eu, "português no mundo"

Cumprimento em português a velhota que limpa os corredores do prédio, Paris está cheia de portugueses do mundo

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Bass_nroll/Flickr

Acordo antes das 7h, já é dia porque é Verão. Saco um café e puxo um cigarro à janela, a ver os desgraçados a vasculhar o lixo, os desgraçados em Paris são muito organizados, têm carrinhos e carretas e horários. Lavo a cara, dou de comer aos gatos, visto-me no lusco-fusco do quarto, hesito entre o Apollinaire e uma história de Bizâncio, pego nos gregos, é mais pesado mas é demasiado cedo para a poesia.

Saio sem som para não acordar a garota, desço as escadas e cumprimento a “gardienne” em português; a rua cheira ao lavado das máquinas camarárias com um retro-gosto às bebedeiras de ontem. O sol brilha, a cor da luz é a mesma de Lisboa, diferente do Porto ou de Madrid. Enfio-me com os outros na boca escâncara do Metro. Claro que no aperto não consigo abrir o livro, não faz mal, tenho música e entretenho-me a adivinhar a origem dos outros imigrantes, às vezes vejo um francês.

Subo ao chão nos Campos Elísios, está tudo lavado à espera dos turistas, o sem-abrigo encardido tenta cravar-me um cigarro e eu encolho os ombros no sinal internacional do “para ti não há”. Passo o cartão e meto os códigos e entro no esvaziado prédio de escritórios, subo ao 5º e, mais códigos e chaves, entro na redacção da BBC Paris. Recolho as canecas do chá dos ingleses, ponho a máquina a lavar, limpo as bancadas e as secretárias com cuidado para não aspergir o equipamento. Recolho o lixo num saco de muitos litros enquanto me admiro com as porcarias que eles comem, lavo as casas de banho e aspiro a alcatifa cor-de-burro-quando-foge, devolvo as canecas ao armário e desço com o lixo. Cumprimento em português a velhota que limpa os corredores do prédio, Paris está cheia de portugueses do mundo.

Na volta já há turistas na rua, americanos gordos e perdidos, japoneses de branco em grupos de 30, senhoras sauditas à procura da Louis Vuitton, é do outro lado da avenida aponto-lhes, não dá para errar, aproveito para ligar ao patrão para lhe lembrar de me pagar, ele diz que sim. Enfio-me no Metro outra vez, no sentido contrário ao trânsito já consigo abrir o livro. De volta ao meu bairro (o 17º) compro um “croissant”, como-o na rua porque se chego com ele a casa a criança come-me metade, o raio da miúda parece uma frieira. Sou recebido pela filha muito penteada e pela mãe ainda desgrenhada, dou-lhe a mão, a caminho da escola vai o tempo todo a cantarolar e a balbuciar inanidades, eu digo-lhe que sim.

Chegados à escola novo código (em Paris é sempre assim), toco nos botões todos antes de aparecer outro pai, mais ensonado mas com melhor memória que nos faz entrar. Entrego a cria à educadora com um “bon courage” e saio antes que ela se comece a portar mal. Volto a casa, tomo banho, vejo as notícias portuguesas na Internet, vejo o correio, escrevo cartas, leio coisas para a tese no sofá, dormito, fumo cigarros, vejo a minha mulher (já penteada) a escrever decidida no portátil sem vontade de a imitar, dormito mais, pergunto o que é o almoço e almoço um sermão feminista.

Comemos qualquer coisa e a tarde continua no mesmo registo até ao regresso da progenitura. Limpamos-lhe o ranho, sacamos-lhe o quilo de areia das botas e dos bolsos e damos-lhe outro lanche, que o da escola não chega para a frieira. Até ao jantar ainda toma banho, anda de trotineta no corredor (para castigo da vizinha suíça de baixo) e vê os avós no Skype; penso na miséria que era a emigração antes do Skype. Jantamos, elas vão para a cama e eu escrevo-vos coisas que se não dormir de noite dormito amanhã de manhã no sofá, pelo menos, como dizia a tropa de antanho, pelo menos até ao meu regresso.

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