Está aberta a época de tiro ao Pinho

Não sei como o PS consegue separar José Sócrates de Manuel Pinho, como se um fosse a febra e o outro a gordura.

A falta que faz um cartão de militante. De entre os grandes erros da vida de Manuel Pinho, um dos maiores será certamente não ter preenchido a ficha de adesão ao Partido Socialista. Quem não faz parte do clube, fica à mercê da sua ira. O independente Manuel Pinho, como se tem visto nos últimos dias, transformou-se no bonequinho onde o PS espeta os seus alfinetes, esperando que assim se produza uma espécie de magia vudu que o faça passar por partido impoluto aos olhos dos portugueses.

Nesta segunda-feira, em declarações à Lusa, Carlos César encheu o peito para afirmar que os socialistas estão “evidentemente interessados em conhecer o que o antigo ministro Pinho tem a dizer sobre todo este caso insólito”. Mas disse mais, e é este mais que soa a inteiramente novo: segundo César, é necessário “escrutinar todas as decisões que ele pessoalmente tomou enquanto foi governante e que se possam relacionar com a situação que lhe é imputada e que ainda não desmentiu”. Meu Deus, alguém me belisque para eu ter a certeza de que estou acordado: o PS quer analisar o comportamento de um antigo ministro para verificar se as decisões que tomou enquanto governante se podem relacionar com eventuais actos de corrupção? Uau. Estou incrivelmente impressionado. Mas, esperem... por que é que o PS não utilizou exactamente o mesmo raciocínio para chamar José Sócrates ao Parlamento?

Ah, pois é: o cartão de militante. O macho-alfa do socialismo português. A única maioria absoluta do partido. O menino de ouro do PS. E o admirado líder de Augusto Santos Silva, Vieira da Silva e tantos deputados mais (deixo de fora António Costa porque este saiu do governo na primeira metade de 2007, e até aí ainda dou um desconto). Não sei como o PS consegue separar José Sócrates de Manuel Pinho, como se um fosse a febra e o outro a gordura. Mas sei que se a comissão de inquérito que o Bloco de Esquerda agora anuncia que vai propor – cito, com grande alegria e prazer, palavras bloquistas: “tudo o que tem vindo a público sobre a actuação do ministro Manuel Pinho durante o seu mandato como ministro da Economia, no que respeita à energia, é gravíssimo, e leva à necessidade de um esclarecimento acerca de responsabilidades políticas na constituição de uma renda garantida, que veio a configurar em alguns anos cerca de um terço dos lucros da EDP” – for para levar a sério, então vai haver uma bomba a fazer tic-tac em cima do coração do regime. Quero ver quantos partidos vão realmente apoiar a constituição de tal comissão.

Pelo menos, uma coisa já ganhámos com a abertura da época de tiro ao Pinho: os políticos portugueses subitamente descobriram que as responsabilidades políticas não se confundem com as responsabilidades judiciais. Aleluia, aleluia. O caso José Sócrates era – e, pelos vistos, continua a ser – apenas uma questão de justiça, acerca da qual somos convidados a aguardar em recatado silêncio. Já o caso Manuel Pinho, amputado da presunção de inocência, e acerca do qual ninguém parece lamentar as fugas ao segredo de justiça, está prontíssimo para ser devidamente escrutinado pelo regime. Ah, como é bela a coerência na República Portuguesa. Quem não se explica, como Manuel Pinho, não merece a complacência de ninguém. Quem se explica pessimamente, como José Sócrates, merece pelo menos a complacência de Arons de Carvalho. Moral da história: nesta terra, antes mentiroso do que silencioso. Alguém deveria escrever isto por baixo da esfera armilar.

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