O “caso Skripal”: factos, interrogações e hipocrisia política

Na guerra da Síria, as atrocidades são vistas do lado que mais convém, conforme se apoia Bashar al-Assad ou os grupos rebeldes. A hipocrisia política é a característica melhor distribuída no mundo. Nada de novo no “caso Skripal”.

1. O “caso Skripal”, que envolve o Reino Unido e a Rússia, desperta paixões na opinião internacional e agora também na portuguesa. Converteu-se num terreno de luta política, interna e internacional, onde se esgrimem argumentos entre os governos e as oposições. Fundamentalmente, há dois campos divididos ideologicamente: os que vêem em Vladimir Putin um inimigo agressor e o regresso da Guerra Fria, ainda que sob outras formas; e os que olham a Rússia de forma benevolente, ou, pelo menos, com compreensão face à sua política externa. O caso caiu no meio de crescentes tensões internacionais, surgidas desde a imposição da pax russa no Cáucaso, na guerra da Geórgia/Ossétia do Sul em 2008. Estas intensificaram-se com a anexação da Crimeia em 2014, a guerra no Leste da Ucrânia e a intervenção russa na Síria, desde 2015. Podíamos acrescentar ainda o apoio da Rússia a vários partidos e movimentos populistas do Ocidente. Mas vejamos os factos do caso.

O ex-espião russo Serguei Skripal, que actuou vários anos como agente duplo, e sua filha Yulia Skripal, foram envenenados com gás que afecta o sistema nervoso, a 4 de Março de 2018, em Salisbury, uma cidade de província do Sul de Inglaterra.

Anteriormente, Serguei Skripal tinha sido condenado na Rússia, em 2006, por “alta traição por espionagem”, a 13 anos de prisão. Foi acusado de ter passado ao MI6 — os serviços secretos britânicos —, a identidade de agentes secretos russos.

Em 2010 foi libertado no âmbito de um acordo de troca de espiões entre a Rússia e os EUA e levado para o Reino Unido, onde passou a residir, dispondo da nacionalidade britânica.

O caso traz à memória a morte anterior de um outro espião russo, Alexander Litvinenko, em Londres, em 2006, envenenado por polónio-210, um material radioactivo.

Lembra ainda um outro caso, o de Anna Chapman, que residiu no Reino Unido e nos EUA. Foi presa neste último país em 2010, acusada de espionagem para a Rússia, sendo libertada na mesma troca de espiões de Serguei Skripal.

Segundo a primeira-ministra britânica, Theresa May, o gás de nervos utilizado contra Serguei Skripal e a sua filha é de uso militar, tendo sido, com elevada probabilidade, produzido pela Rússia. Esse gás — chamado Novichok —, faz parte da lista de armas químicas proibidas pela Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção, Armazenagem e Utilização de Armas Químicas e sobre sua Destruição (1982), feita no âmbito das Nações Unidas.

O Governo da Rússia nega as acusações britânicas dizendo nada ter a ver como o assunto. Acusa tratar-se de uma manobra do Ocidente para prejudicar a sua imagem internacional.

2. Para Theresa May o “caso Skripal” só tem duas explicações possíveis: ou foi um acto directo de agressão do Estado russo; ou o Governo da Rússia perdeu o controlo sobre o gás Novichok, o que esta vê como potencialmente catastrófico. Mas um caso com estas características — estamos a falar de espionagem e de contra-espionagem —, tem sempre contornos obscuros e zonas cinzentas difíceis de avaliar por um observador externo isento. Naturalmente que há dados não acessíveis à opinião pública. Se os factos conhecidos apontam significativamente para a Rússia, há questões relevantes em aberto para as quais não há uma resposta clara nesta altura. Atente-se nas seguintes interrogações:

Se o atentado foi ordenado pelo Governo ou serviços secretos russos, qual foi o ganho da Rússia neste caso? A questão coloca-se porque Serguei Skripal esteve vários anos detido na Rússia (entre 2004 e 2010) e depois foi libertado numa troca de prisioneiros. Se tinha informação valiosa, por que razão a Rússia o libertou?

Esteve, depois disso, Serguei Skripal envolvido em novas actividades de espionagem anti-russas que levaram agora a uma execução no exterior?

O atentado ocorreu a 4 de Março. A eleição presidencial na Rússia ocorreu a 18 de Março, tendo Vladimir Putin sido eleito com mais de 3/4 dos votos. Este atentado visou favorecer a (re)eleição de Putin, ou, pelo contrário, prejudicá-la?

É plausível, ou é absurda, a tese de que alguém ligado aos oligarcas e fora do controlo do Estado russo possa ter perpetrado tal acto para constranger internacionalmente Vladimir Putin?

A Rússia quis com este acto testar o Reino Unido, em processo de saída da União Europeia, e ver a sua força ou fragilidade no actual contexto político?

A reacção britânica, de invulgar dureza, pode também ser explicada pelo “Brexit” — e pela oportunidade de ter a União Europeia e EUA do seu lado —, bem como do Governo dividir a oposição do Partido Trabalhista e isolar Jeremy Corbyn?

E a contundente reacção dos EUA pode ser interpretada, pelo menos em parte, como uma forma de desviar a atenções de Donald Trump, dado estar sob investigação pelas ligações à Rússia na eleição presidencial de 2016?

3. Como é típico destes casos internacionais, nesta altura é impossível ter uma prova totalmente conclusiva sobre o que efectivamente ocorreu. Qualquer investigação aprofundada demorará meses, ou até anos, e poderá continuar até a ser inconclusiva em termos estabelecer um nexo de causalidade acima de qualquer dúvida face ao Estado russo, ou a outro hipotético responsável. Mas o tempo da investigação não se compadece com o tempo da política internacional. As reacções políticas e diplomáticas estão já em marcha, em certos casos de forma bem contundente, fazendo lembrar a Guerra Fria.

As declarações com acusação da Rússia feitas pelos governantes britânicos (Theresa May, Boris Johnson) foram num tom particularmente duro face à linguagem diplomática habitual.

O Reino Unido apelou veementemente a uma ampla condenação da Rússia, quer dos seus aliados tradicionais (União Europeia, NATO, etc.), quer da comunidade internacional.

O Governo britânico expulsou 23 diplomatas russos; o Governo norte-americano 60, o número mais elevado; a Alemanha e a França quatro diplomatas russos cada; fora da União Europeia, a Ucrânia expulsou o maior número, 13 diplomatas.

Na União Europeia, a reacção variou de intensidade, oscilando entre a expulsão de diplomatas e o aumento da lista de personae non gratae (medidas usadas pela maioria dos Estados da União Europeia) e o chamamento de embaixadores para consulta.

Até agora, oito Estados da União Europeia não fizeram, ou anunciaram tencionar efectuar, expulsões de diplomatas: Portugal, Luxemburgo, Áustria, Eslováquia, Malta, Chipre, Grécia, Bulgária.

No âmbito da NATO, a Turquia condena o uso do gás de nervos, mas não vai expulsar quaisquer diplomatas russos.

4. Muitas vezes as decisões em política internacional têm de ser tomadas com base em probabilidades. Mas uma elevada plausibilidade não é uma certeza na ocorrência de um facto. Pode-se mostrar uma (conveniente) conjectura errada, como se viu no Iraque de Saddam Hussein, que ambicionava armas nucleares, mas não as tinha. Ao mesmo tempo, é necessário balancear as perdas e ganhos, tendo em conta os múltiplos interesses no complexo puzzle da política internacional. Como decidem então os Estados? Vejamos as motivações para a expulsão de diplomatas russos, que vão bastante além de uma solidariedade abstracta entre aliados. Na vizinha Espanha, para além da solidariedade com os britânicos, a decisão foi motivada pela convicção da interferência russa a favor do separatismo da Catalunha. Nos Estados Bálticos (e outros do Leste europeu como a Polónia), pela má relação histórica com a Rússia/União Soviética, onde foram integrados à força. Percepcionam a Rússia actual como uma continuada ameaça geopolítica. Noutros Estados da União Europeia prevalecem lógicas opostas. A Grécia e Chipre, por razões históricas, políticas e de interesses económicos, olham para Rússia de uma maneira benigna, tendo-se abstido de medidas diplomáticas drásticas. Quanto, à Turquia, no âmbito da NATO, fez o mesmo, pensando nos seus interesses na Síria. Falta de solidariedade entre aliados? Talvez, mas nada fora do padrão usual. No caso do Kosovo, os membros da União Europeia dividiram-se: a maioria reconhecem-no como Estado soberano, mas outros não, consoante as conveniências. Na relação com a Arábia Saudita, os valores e direitos humanos proclamados por norte-americanos, britânicos, franceses cedem facilmente aos negócios e interesses económicos. Na guerra da Síria, as atrocidades são vistas do lado que mais convém, conforme se apoia Bashar al-Assad ou os grupos rebeldes. A hipocrisia política é a característica mais bem distribuída no mundo. Nada de novo no “caso Skripal”.

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