Tribunal de Contas aprovou ajuste directo de navios apesar das dúvidas

Governo de Passos invocou “urgência imperiosa” em construir dois navios para a Marinha. Tribunal deu luz verde, mas relatório interno dizia não ser “óbvio” o motivo pelo qual não houve concurso público.

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Enric Vives-Rubio / Arquivo

Nos primeiros dias de Setembro de 2015, com o país político a um mês das legislativas, o Tribunal de Contas (TdC) tinha em cima da mesa um dossier sensível para resolver: decidir se daria ou não luz verde a um contrato de 77 milhões de euros, aprovado por ajuste directo pelo Governo de Pedro Passos Coelho, para serem construídos dois navios destinados à Marinha portuguesa. De um lado, como adjudicante, estava o Estado; do outro, como fornecedor, um consórcio de duas empresas – a West Sea (sociedade do grupo Martifer que ficou com a subconcessão dos terrenos e infraestruturas dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo) e a Edisof.

O ajuste directo fora aprovado no Conselho de Ministros de 28 de Maio. O contrato estava assinado desde 22 de Julho. E quando a 7 de Setembro chega o momento de conceder ou recusar o visto prévio, o contrato é aprovado. Mas se a legalidade não foi posta em causa pelos juízes-conselheiros – que aceitaram as justificações do Ministério da Defesa então liderado por José Pedro Aguiar-Branco considerando a decisão fundamentada –, o relatório interno do departamento de controlo prévio do TdC, lido pelo PÚBLICO, não era inequívoco em relação a isso. E levantava dúvidas sobre a inevitabilidade de tudo ter sido feito por ajuste directo.

Depois de analisar documentação e receber esclarecimentos da Direcção-Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN), a técnica verificadora superior que assina o relatório afirma a determinada altura no documento concluído a 1 de Setembro de 2015: “Se não parece ser de questionar a necessidade de construção dos navios-patrulha oceânicos, no entanto, da explicação apresentada não resulta óbvio o motivo pelo qual não se poderia ter recorrido a um procedimento por concurso público internacional, que permitiria obedecer aos princípios basilares da contratação pública (concorrência, igualdade e transparência), ao contrário de se ter escolhido o procedimento em causa”. Apesar de reconhecer que essa alternativa implicaria “uma delonga num processo já de si arrastado no tempo” – estávamos em 2015 e o Governo queria os navios prontos em 2018 –, afirma que isso permitiria ao consórcio da Martifer e da Edisoft ter apresentado “uma proposta em concorrência com outros estaleiros e, sendo o caso de realmente ter as melhores condições, ser-lhe adjudicada a empreitada”, o que “beneficiaria o erário público ao confirmar, deste modo objectivo, que o projecto em causa seria, de facto, melhor executado pelo consórcio”.

O Ministério Público, que se debruçou sobre o caso depois de receber uma carta da eurodeputada do PS Ana Gomes, arquivou o inquérito em Janeiro deste ano, concluindo que a produção de prova não permitiu obter indícios suficientes da prática dos crimes de administração danosa, corrupção passiva e activa e participação económica em negócio. Mas o relatório de 2015 do TdC ganha agora uma nova actualidade: é que a Comissão Europeia iniciou, também em Janeiro, um processo de infracção contra Portugal por causa deste contrato. Argumento: “Não aplicação – ou aplicação incorrecta – das regras da UE em matéria de contratos públicos” na área da Defesa e Segurança.

Cancelamento e urgência

Apoiado num parecer da sociedade de advogados Sérvulo & Associados, o Governo invocou então “urgência imperiosa” em ter os dois navios ao serviço da Marinha até 2018, para substituir duas corvetas já com mais de 40 anos. Em Setembro de 2012, no período da troika, o executivo cancelara o contrato que vinha de 2004 relativo a dois navios-patrulha oceânicos e de combate à poluição, e revogara também um contrato de 2009 de lanchas de fiscalização costeira. Agora, escolhia a West Sea por ter “o conhecimento” necessário, como herdeira dos estaleiros de Viana, onde tinham sido construídos dois navios da mesma classe já ao serviço da Marinha.

Chamado a explicar-se, a DGRDN garantiu que chegou a fazer uma prospecção internacional, concluindo que não havia construções navais que “acomodassem em tempo útil, com preços aceitáveis, a replicação” dos dois navios construídos antes da subconcessão à Martifer. E argumentou que o consórcio tinha as capacidades técnicas “nomeadamente declarações de direitos de propriedade intelectual e direitos exclusivos de venda em Portugal de componentes”.

Mesmo depois das explicações, o relatório do departamento de controlo interno continuava a colocar à consideração superior dois cenários: “Aceitar a explicação avançada” ou “questionar se estas vantagens deveriam ter sido confirmadas” num concurso, para os vários estaleiros atestarem “da sua capacidade (ou incapacidade)” em cumprir o projecto no prazo previsto.

No último parágrafo, o relatório continuava a apontar para esses dois caminhos a ter em conta na decisão final: analisar se o ajuste directo foi a opção mais adequada, “se garantiu o cumprimento dos princípios da concorrência, da igualdade e da transparência” e o melhor resultado financeiro; ou se “tal só teria sido verdadeiramente assegurado” com outro procedimento. Pesados os argumentos, vingou a fundamentação do Governo.

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