Ajuste directo de navios à Martifer força mais explicações a Bruxelas

Processo contra Portugal avança por violação de regras europeias. Concurso na área da Defesa foi decidido quatro meses antes das últimas legislativas. Aguiar-Branco em silêncio

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Aguiar Branco liderava a pasta da Defesa nacional quando contrato foi adjudicado à West Sea PAULO PIMENTA

O processo de infracção desencadeado há uma semana contra Portugal pela Comissão Europeia pela violação das regras comunitárias de contratos públicos no sector da Defesa tem origem na decisão do anterior Governo de entregar, por ajuste directo, a construção de dois navios-patrulha oceânicos destinados à Marinha portuguesa a um consórcio liderado pela empresa West Sea, do grupo Martifer.

Ainda antes de Bruxelas avançar com a notificação ao Estado português, os serviços da Comissão já tinham pedido e recebido esclarecimentos das autoridades portuguesas, mas isso não evitou o início de um processo formal de infracção, forçando agora o Governo a ser chamado a prestar novos esclarecimentos. Fica a dúvida se o actual executivo defenderá junto da Comissão Juncker a posição do anterior, quando considerou inviável recorrer a um concurso público.

Em causa está um contrato decidido pelo anterior Governo a 28 de Maio de 2015, a quatro meses das eleições legislativas, quando José Pedro Aguiar-Branco estava à frente da pasta da Defesa Nacional. A adjudicação – com a autorização para a Marinha pagar até 77 milhões de euros (acrescido de IVA) pela construção dos dois navios ao longo de quatro anos – foi justificada pelo executivo com “motivos de interesse público e urgência imperiosa” em dotar a Marinha dos meios necessários para assegurar a capacidade de patrulha e fiscalização “no mais curto prazo possível”.

Ao ser questionado pelo PÚBLICO esta semana, quando ainda aguardava a notificação de Bruxelas, o gabinete do ministro da Defesa Nacional, José Azeredo Lopes, não clarificou qual se espera vir a ser o sentido da posição portuguesa junto do executivo comunitário.

Abrir um concurso, justificou então o anterior Governo na resolução do Conselho de Ministros, impediria que o início da execução do contrato acontecesse antes de passado “pelo menos um ano”, a somar à “inevitável demora acrescida” na fase de construção caso o vencedor fosse um “qualquer fornecedor” sem “acervo de capacitação industrial” dos navios da classe “Viana do Castelo”, semelhantes aos dois navios-patrulha que estavam já ao serviço da Marinha, construídos naqueles estaleiros.

A West Sea, a quem foi adjudicado o contrato em consórcio com a Edisoft, é a empresa de construção naval que a Martifer constituiu em 2013 depois de o grupo, através da Martifer - Energy Systems e da Navalria, ter vencido em Outubro desse ano o concurso de subconcessão dos terrenos, infra-estruturas e alguns equipamentos dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC), por uma renda anual de 415 mil euros até 2031. No caso da West Sea, o Governo de Passos Coelho justificou a escolha directa da empresa por considerar que a herdeira dos estaleiros de Viana se capacitou, e era única entidade, com os “activos técnicos, tecnológico e logísticos” que permitiriam construir navios idênticos aos dois primeiros, executados nos ENVC.

Salvaguardar documentos

O processo intentado pela mão da comissária responsável pelo mercado interno, Elzbieta Bienkowska, foi desencadeado a partir de uma carta enviada pela eurodeputada do PS Ana Gomes ainda no Verão de 2015. Os serviços receberam entretanto esclarecimentos de Portugal, mas acabaram por ver razões para dar seguimento à averiguação. Ao PÚBLICO, Ana Gomes considera “a decisão [de adjudicação directa] indefensável” e adianta que vai dar conta do processo de Bruxelas à Procuradoria-Geral da República (PGR), a quem alertara já para o assunto.

Contactada, a administração do grupo Martifer não quis comentar, por considerar que esta “não é uma questão da WestSea (Martifer)”. Aguiar Branco, por sua vez, optou por não responder às perguntas enviadas na quarta-feira para o email profissional da sua sociedade de advogados, não reagindo à iniciativa da Comissão.

O ex-ministro da Defesa também não respondeu ao pedido do PÚBLICO, enviado no mesmo email de quarta-feira e ontem de novo remetido, para esclarecer de que forma ficou assegurada a salvaguarda dos documentos, projectos e bens adquiridos ou produzidos no âmbito dos contratos de fornecimento dos dois navios. Isto porque em 2012, quando estava em cima da mesa o processo que viria a desembocar na subconcessão dos ENVC, o ministro da Defesa revogara o contrato (de 2004) para a construção de dois navios (e avançara com procedimentos para ser concluída a entrega de um dos actuais dois navios-patrulha oceânicos que estão ao serviço da Marinha).

Em relação aos navios em construção pela West Sea, os prazos de entrega previstos no contrato mantêm-se: um chega em Junho deste ano e outro em Dezembro. O Ministério da Defesa confirmou que as embarcações estão na fase de aprestamento – de instalação de máquinas, equipamentos, espaços habitacionais, electricidade e encanamentos. Ao PÚBLICO, o almirante Fernando Melo Gomes, ex-Chefe do Estado-Maior da Armada (até 2010), diz esperar que o processo de infracção “não venha a prejudicar o programa dos patrulhas oceânicos, que fazem muita falta ao país, para assegurar a fiscalização” necessária para a extensão da plataforma continental.

No Departamento Central de Investigação de Acção Penal (DCIAP) decorre a Operação Atlântis, onde se investigam “factos relacionados com a subconcessão dos Estaleiros de Viana e a venda do Navio Atlântida” por suspeitas da prática de crimes de administração danosa, corrupção e participação económica em negócio. Não se sabe, no entanto, se a adjudicação directa da construção dos dois navios, posterior à subconcessão, integra ou está relacionada com o âmbito do inquérito.

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