Itália, país em chiaroscuro

Não é difícil concluir que as tensões que a Itália vive — sociais, culturais e raciais, num país onde até há poucos anos era raro ver gente de outra cor ou religião — estão à flor da pele.

Florença, Itália. — Chego à noitinha, de comboio. Mal ponho o pé fora da estação vejo descer a rua uma multidão encolerizada. São imigrantes africanos, quase todos homens. Atrás deles vem uma outra multidão: dezenas de polícias de choque em formação compacta, de capacetes azul-petróleo, escudos de plástico transparente, bastões negros nas mãos. Um dos imigrantes empurra, não se percebe se involuntariamente, o caixote de lixo sobre rodas deixado na rua por um empregado municipal de limpeza. Este mergulha no meio da multidão procurando recuperar o seu instrumento de trabalho e, de caminho, agredindo e insultando alguns dos imigrantes. Vários deles respondem também, insultam-no e empurram-no, enquanto outros apelam à calma e tentam segurá-lo. A polícia de choque reage e carrega sobre os imigrantes. O funcionário da limpeza é extraído e puxado para cá das linhas policiais. À minha volta, várias pessoas sacam dos seus telemóveis e filmam tudo, em silêncio. Quando a confusão passa é em silêncio também que cada um segue o seu caminho.

As fotografias e os filmes que daqui saírem servirão para contar histórias opostas, a favor ou contra os imigrantes - talvez mais a segunda hipótese, que ainda há pouco tempo serviu de pretexto a um militante de extrema-direita para disparar sobre todas as pessoas de pele negra que encontrou na sua cidade.

O que falta é o contexto. Aqueles homens, senegaleses na sua maioria, estão na rua porque um homem senegalês foi aqui assassinado na manhã deste dia (anteontem) por um aposentado italiano de 65 anos. O assassino confesso decidira suicidar-se e escrevera mesmo um bilhete à filha explicando que o fazia por dívidas. No momento crucial, faltou-lhe coragem. Escolheu então ir para a rua e matar a primeira pessoa que encontrasse. E quem ele encontrou foi um homem negro de meia idade, Idy Diene, que vendia chapéus de chuva à beira do rio Arno, não muito longe de onde Dante encontrou no século XIII a sua Beatriz. Idy Diene não foi a primeira vítima de morte violenta nesta cidade, nem sequer na sua família. Dez anos antes, dois dos seus primos foram assassinados em Florença por um militante de extrema-direita.

Agora já não temos uma história fácil de meter nas redes sociais ou num clip de youtube. Temos um homem assassinado enquanto tentava ganhar a vida como vendedor ambulante de guarda-chuvas. Temos um pensionista apoquentado pelas dívidas que se quer suicidar e em vez disso se torna num assassino. Temos algumas centenas de imigrantes africanos que têm razões para acreditar que estamos perante um novo crime racista. Temos um homem do lixo que trabalhou o dia todo e não quer o seu caixote virado do avesso. Temos um corpo de polícia de choque que reage ao mínimo estímulo. Temos gente cansada, numa Florença fria e àquela hora feia, à espera do autocarro na chuva miudinha, que filma a cena no seu smartphone e depois vai para casa sem comentar nada com o seu vizinho do lado. Que pensarão eles?

Não é difícil concluir que as tensões que a Itália vive - sociais, culturais e raciais, num país onde até há poucos anos era raro ver gente de outra cor ou religião - estão à flor da pele. No entanto, tal como com os clips que se publicam nas redes sociais, é fácil contar uma história enviesada só para um lado. A esta hora, a Itália parece um país a caminhar para a escuridão. Mas não é só isso.

Na última crónica expliquei que as eleições italianas eram um problema italiano, e que quem esperava que daqui saísse uma nova crise do euro ou da UE o fazia apenas porque, bem, há sempre gente que espera o fim do euro ou da UE a cada esquina - quando se justifica e quando não se justifica. Ao escrevê-lo, tenho bem consciência de que estou em contra-corrente. Tanto melhor; discordem, mas verifiquem depois quem teve razão.

É preciso encarar de frente o ambiente tenso, feio, frustrante que se vive em Itália. Mas isso não nos deve impedir de ver o resto da realidade. Adequadamente para o país onde se criou a pintura em chiaroscuro - claro-escuro, com sombras profundas recortadas por uma luz gloriosa - não há só trevas em Itália. Começa também a ver-se mais claro, três dias após as eleições. E nem todas as opções são igualmente más para a Itália, nem para a Europa. Na próxima crónica falaremos daquelas a que os jornais e os comentadores têm dado menos destaque.

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