“Seria terrível se Trump começasse a desfazer o acordo com o Irão”

Wendy Sherman diz que a Coreia do Norte não é apenas um problema da América. Diz respeito ao mundo inteiro. Rasgar o acordo com o Irão seria um péssimo sinal, perante o risco de proliferação nuclear.

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Wendy Sherman em Genebra em 2013, durante as negociações com o Irão Reuters

Poucos currículos podem comparar-se ao de Wendy Sherman, no universo das relações externas dos Estados Unidos. Foi subsecretária de Estado, aconselhando Bill Clinton nas negociações com Pyongyang, as únicas que resultaram. Passou horas e horas seguidas a negociar o acordo nuclear com o Irão. É uma das vozes mais ouvidas no debate americano sobre o mundo. Esteve em Lisboa esta semana, a convite da Sociedade Francisco Manuel dos Santos.

Como vê a forma como o Presidente Trump está a lidar com a crise nuclear norte-coreana? Ele disse recentemente a Rex Tillerson que era uma perda de tempo tentar negociar com Pyongyang. A opção dele é apenas a militar?
Não creio que a sua única opção seja essa. Várias coisas estão em andamento. Defendo que o nosso governo deve conversar com muitos outros países, porque este não é apenas um problema para os Estados Unidos, é um problema mundial. Creio que as resoluções sobre as sanções no Conselho de Segurança foram um óptimo sinal.

Com a China e a Rússia a votarem a favor.
Sim. A China já deu alguns passos adicionais. Os EUA estão a fazer o mesmo. Alguns países já pediram aos embaixadores da Coreia do Norte para saírem. Por isso, insisto que esta crise tem de ser vista como um problema mundial e não apenas um problema dos EUA. Dito isto, os Estados Unidos têm um papel muito importante sobre o que pode acontecer. O governo norte-coreano justifica as armas nucleares, em parte, porque tem medo do que os EUA possam fazer. Mas o regime norte-coreano quer as armas nucleares para impor uma Coreia unificada, sob o seu poder, e também porque quer ser reconhecido como uma grande potência. Dito tudo isto, para além de trabalharmos com outros parceiros, creio que devemos ter à disposição todos os instrumentos possíveis: pressão, dissuasão, informações, diplomacia pública, mantendo uma ameaça do uso da força credível. Mas esta ameaça tem de estar ao serviço da diplomacia. Não ao contrário.

E Tillerson?
Penso que, obviamente, o secretário de Estado está a tentar que a diplomacia avance, com algumas conversações directas. Não creio que tenham ido muito longe. O Presidente americano gosta de manter as pessoas na dúvida. Deve acreditar na teoria do “homem louco” …

Como Nixon?
Sim. O secretário Tillerson pode dizer: estão a ouvir o que o meu Presidente está a dizer? O melhor para vocês é conversarem connosco. Mas não creio que esta maneira de proceder esteja a funcionar, pelo menos por agora. Dada a natureza do governo norte-coreano, atirar insultos uns aos outros apenas serve para escalar a situação: é inútil. Espero que [Tillerson] continue a tentar desenvolver alguma diplomacia. O que não quer dizer que este problema seja fácil de resolver. Seria um problema muito difícil para qualquer Presidente.

Como vê as preocupações dos aliados dos EUA na região, o Japão, a Coreia do Sul? Estão nervosos, não sabem o que esperar desta Administração.
Não podem resolver o problema por eles próprios, mas os EUA também não. Temos de ter uma dose de humildade. A Coreia do Sul é o primeiro país em risco, neste momento. Por isso, os EUA devem estar em permanente consulta com eles.Com o Japão também. Mas fico satisfeita com a viagem recente de Tillerson à China.

Há um risco real de nuclearização na região? O Japão e a Coreia do Sul têm capacidade para o fazer.
Há sempre esse risco e não é só o problema da Coreia do Sul e do Japão. Outros países começam a pensar que também devem ter armas nucleares. E isso pode ser muito perigoso.

A China é crucial, mas começa a dar a ideia de que a sua capacidade de pressionar Pyongyang tem limites.
É verdade que não têm a influência que já tiveram no passado. Mas têm uma capacidade económica que ainda não usaram, tanto no sistema financeiro como no fornecimento energético. A China ainda tem essa capacidade e espero que acabe por utilizá-la. Mas vão ser muito prudentes, porque têm medo de um colapso. Mas também penso que compreendem que esta situação é insustentável e que têm de fazer mais. O facto de os chineses terem ordenado ao seu sistema financeiro que fechasse algumas das vias de circulação do dinheiro norte-coreano é importante. 

Em matéria de política externa, há por vezes a ideia de que as decisões de Trump são erráticas. Há uma doutrina por trás?
Não concordo com a sua doutrina, mas creio que o seu discurso na Assembleia Geral da ONU serviu para apresentar o que pensa. Trata-se de uma doutrina em que a soberania é a peça central, e a soberania é importante para qualquer país. O problema é que os desafios que enfrentamos não têm fronteiras. O que acontece na tecnologia, no clima, com as pandemias, a economia internacional, o terrorismo ou as migrações – todos estes problemas são globais. Não respeitam fronteiras. Temos de cooperar com os outros para resolver todos estes desafios. Creio que ele também acredita que o mundo funciona através de interesses que competem entre si. Não creio que acredite que existe uma comunidade global. Eu penso que tem de existir uma comunidade global.

O que Trump frisou no mesmo discurso foi que o poder militar americano não tem paralelo. Com esta nova desordem internacional, o que conta é a força militar?
Ter uma capacidade militar forte para dissuadir é importante. Apesar disso, haverá conflitos no futuro que não se reduzem a isso: a competição pela água, as consequências das mudanças climáticas, os conflitos religiosos, quem obtém o quê na esfera económica. E estas coisas não podem ser resolvidas por meios militares. Mas creio que parte da força dos Estados Unidos ainda está na sua capacidade militar.

Há já um sem número de artigos de analistas e de académicos a dizer que Trump está a destruir a ordem internacional liberal criada pelos EUA depois da II Guerra. Concorda?
Penso que as instituições que foram criadas depois da II Guerra têm sido desafiadas e não apenas pelos Estados Unidos, mas também por outros países e por outros interesses. Mas defendo que continua a ser fundamental para os EUA sublinhar a importância destas instituições, que nos serviram bem. Inicialmente, o Presidente Trump não queria reafirmar o Artigo 5.º da NATO, mas acabou por fazê-lo, porque quem o rodeia convenceu-o a não se retirar desta aliança.

Os europeus ainda não perceberam o que Trump quer fazer das relações transatlânticas. Ele olha para a Europa de outra maneira?
Ele olha para as coisas como se fossem transacções, o que vem da sua experiência no negócio do imobiliário. O problema é que o mundo não se reduz a transacções, assenta na importância das relações e do seu significado. E a aliança transatlântica é uma das mais, se não a mais fundamental parceria no mundo. Haverá em breve um teste importante, quando ele tiver de certificar o acordo nuclear com o Irão perante o Congresso. Se não o fizer, está a permitir que os EUA se isolem da Europa. Servirá apenas para isolar os EUA.

Se decidir rasgá-lo, criará enormes problemas e não apenas para a Europa, que o negociou com os EUA.  
Passei imensas horas a negociar esse acordo. Mesmo imensas. E creio que será terrível se ele começar a desfazê-lo. Se ele não certificar perante o Congresso, o Congresso terá 60 dias para decidir voltar a aplicar sanções. Não creio que Trump queira voltar a aplicar sanções. Creio que ele apenas não quer ser obrigado a certificar de três em três meses, e isso pode criar uma situação muito difícil.

Muita gente na sua Administração quer que o acordo se mantenha.
Tenho esperança que sim, mas não sei. O que sei é que, se ele quer que as pessoas pensem que somos um parceiro credível e confiável, deve mantê-lo. Não se trata apenas um acordo entre os EUA e o Irão. É um acordo negociado pelos “cinco mais um” [os membros permanentes do Conselho Segurança, mais a Alemanha] e apoiado pelos 15 membros do Conselho de Segurança.

Durante a campanha eleitoral, o Presidente falou muitas vezes do seu bom amigo Putin. A relação está comprometida com a alegada interferência russa nas eleições? Ou é pelo que se passa na Ucrânia, nos Bálticos, na Polónia?
Não posso explicar a relação do Presidente com a Rússia. Mas o que posso dizer é que a interferência da Rússia nas eleições é um assunto muito sério, uma enorme preocupação, tornando muito difícil encontrar um caminho de cooperação futura com a Rússia. Não quer dizer que não devamos tentar. A Rússia foi importante no acordo com o Irão. Mas está a desafiar a segurança da Europa. E não podemos conciliar com isso.

Trump insiste em que os EUA não têm de resolver todos os problemas do mundo. Mas a realidade diz outra coisa, com as crises da Síria, da Coreia do Norte, da Rússia, etc... Hoje, a ideia de isolacionismo deixou de ser possível?
Estamos a fazer esta entrevista no dia em que 58 americanos foram mortos e 400 ficaram feridos em Las Vegas. E não vale a pena falar do ISIS [outra denominação do grupo radical islâmico Daesh]. Foi um americano de 68 anos quem matou. Os EUA estão concentrados na recuperação de Houston, da Florida e de Porto Rico, que sofreram ciclones terríveis. Isso recomenda a todos nós que sejamos muito sóbrios sobre o nosso lugar no mundo. Normalmente, quando estamos confrontados com catástrofes desta natureza, sabemos unir-nos. O que lhe posso dizer é que, em todas estas comunidades, as pessoas uniram-se. É muito importante que o Presidente compreenda que o seu trabalho é unir-nos a todos, incluindo no mundo, e não dividir-nos.

O Presidente Obama olhava para a China como o maior desafio de longo prazo, reorientando para a Ásia as prioridades da América. A China começa a olhar para o mundo com os olhos de uma grande potência. O que devem fazer os EUA?
Durante a Administração Bush, Bob Zoellik [subsecretário de Estado da Administração Bush] criou o termo responsible stakeholder, o que quer dizer que, se a China quer continuar a desenvolver-se como até aqui, tem de passar a ser mais responsável pelo que acontece no mundo. Não pode limitar-se a tirar benefícios, tem de dar alguma coisa em troca. Creio que é um conceito importante e que, se a China quer ser cada vez mais um dos líderes mundiais, tem de assumir algumas responsabilidades e ser responsabilizada por aquilo que faz. O Presidente Obama costumava dizer que não tinha qualquer problema com a ascensão da China, desde que as regras fossem justas, garantindo uma situação em que todos têm as mesmas condições de sucesso. Se agir de forma a desequilibrar [estas regras comuns], terá de ser penalizada. Mas a recessão de 2008 mostrou de uma forma cristalina que, em termos económicos, os EUA estão ligados a China, como a China está ligada aos EUA. Se uma das duas economias tiver problemas, a outra também vai ter. Por isso, vamos ter de aprender a viver juntos neste mundo.

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