Uma carta "problemática" de Trump foi parar ao correio de Robert Mueller

Em Maio, o Presidente norte-americano ditou uma carta para ser enviada ao então director do FBI, mas um conselheiro considerou-a "problemática" e sugeriu uma versão mais formal. O original chegou agora às mãos da equipa que investiga suspeitas de obstrução da Justiça.

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O genro de Donald Trump, Jared Kushner, apoiou a demissão do director do FBI Kevin Lamarque/Reuters

Por muito que a destituição do actual Presidente norte-americano seja uma prenda de Natal de sonho para milhões de pessoas em todo o mundo, a verdade é que as notícias sobre a investigação às suspeitas de conluio com a Rússia têm-se baseado mais em suposições do que em factos.

À semelhança do que aconteceu no início da década de 1970 com Richard Nixon, muitos parecem ter já poucas dúvidas de que o Presidente Trump é culpado e deve ser destituído – mas o destino de Nixon só ficou selado depois de os investigadores terem posto as mãos em cassetes áudio com gravações comprometedoras, e até agora nada do mesmo género caiu no colo da equipa que investiga Trump e alguns dos seus colaboradores durante a campanha eleitoral do ano passado.

Em termos gerais, o procurador especial Robert Mueller tem a mesma tarefa dos investigadores que conseguiram encostar Richard Nixon à parede há mais de 40 anos: para muitas pessoas, tudo parece cair como uma luva, e 2+2 até pode ser igual a 4, mas até agora não foi apresentada uma prova. Por outras palavras, Mueller e a sua equipa ainda não terão posto as mãos nas "gravações" de Donald Trump – sejam elas feitas em áudio, em vídeo, por escrito ou desenhadas.

Mas eis que esta semana entrou em cena uma carta ditada por Trump cuja existência era desconhecida do grande público até agora, e que chegou há pouco tempo às mãos do procurador especial. Quem a viu disse ao jornal The New York Times que tem muitas páginas e que foi escrita por Stephen Miller, um dos principais conselheiros do Presidente norte-americano e ideologicamente próximo de Stephen Bannon – o ex-principal estratega da Casa Branca e ex-director do site Breitbart (uma das fontes de informação preferidas da direita nacionalista e supremacista branca norte-americana).

Ruptura com Comey

A história dessa carta começa num fim-de-semana prolongado no início de Maio, quando Trump viajou até ao seu clube de golfe privado em Bedminster, no estado de Nova Jérsia. Mas a chuva obrigou-o a passar mais tempo em casa do que no campo, e durante uma reunião com os três conselheiros que o acompanharam (Stephen Miller; a sua filha Ivanka; e o seu genro, Jared Kushner) decidiu ditar uma carta que tinha como destinatário o então director do FBI, James Comey.

Nesse fim-de-semana prolongado, de 4 a 7 de Maio, a relação conturbada entre Trump e Comey estava prestes a atingir o seu ponto de ruptura – um dia depois de ter regressado a Washington, na terça-feira 9 de Maio, o Presidente norte-americano despediu o director do FBI.

Num primeiro momento, Trump justificou a demissão de Comey com uma recomendação feita nesse sentido pelo Departamento de Justiça, que acusara o então director do FBI de ter metido os pés pelas mãos nos meses que antecederam as eleições presidenciais – no Verão de 2016, Comey acusou Hillary Clinton de ser "extremamente descuidada" a tratar de informação confidencial, mas não recomendou que ela fosse acusada formalmente; em finais de Outubro, anunciou que ia investigar mais e-mails enviados por Clinton, sendo ainda hoje acusado pela candidata do Partido Democrata de ter influenciado o resultado das eleições; e a poucas horas do dia decisivo, na noite de 6 de Novembro, fez saber que o FBI não encontrou nada de grave nesses e-mails.

A explicação oficial para a demissão de Comey, repetida por figuras tão importantes da Administração Trump como o vice-presidente, Mike Pence, era esta: o Departamento de Justiça concluiu que o director do FBI não tinha condições para se manter no cargo e recomendou ao Presidente que o demitisse. Mas o próprio Donald Trump encarregou-se de apresentar outra versão pouco depois, numa entrevista à estação NBC: antes da recomendação do Departamento de Justiça, já Trump estava decidido a despedir Comey; a recomendação tinha sido apenas uma coincidência que reforçara a convicção do Presidente.

O que não se sabia até agora é que a carta de demissão tornada pública foi uma versão revista e condensada de uma outra que Trump tinha ditado no fim-de-semana anterior, no seu clube de golfe – o que reforça a ideia de que o Presidente já andava a pensar em despedir o director do FBI (tal como disse à NBC) e compromete a versão inicial, repetida publicamente pelo vice-presidente (afinal a decisão não partira de uma recomendação do Departamento de Justiça).

Raspanete

O que está escrito nessa primeira carta continua a ser segredo para os jornalistas. O que se sabe – segundo os funcionários da Casa Branca que falaram sob anonimato ao New York Times – é que a carta é mais um raspanete do que uma justificação para a demissão.

Trump acabou por autorizar o procurador-geral adjunto, Rod Rosenstein, a escrever uma versão mais bem comportada dessa carta, depois de o conselheiro da Casa Branca para assuntos jurídicos, Donald McGahn, ter dito ao Presidente que o texto original era "problemático" – não se sabe o que levou McGahn a dizer isso, mas é sabido que Robert Mueller também está a investigar se o Presidente norte-americano obstruiu a Justiça durante o processo de decisão que levou à demissão do director do FBI.

Ainda é cedo para se perceber se as palavras ditadas por Trump e escritas pelo seu conselheiro Stephen Miller podem ser a primeira prova de que o Presidente norte-americano comprometeu o trabalho da Justiça – afinal, é a suspeita de obstrução, e não a de um possível envolvimento num plano com a Rússia para prejudicar Hillary Clinton, que tem chamado a atenção da equipa de investigação. Mas são momentos como este que podem marcar o caminho de uma investigação desta envergadura.

Como a destituição de um Presidente norte-americano é um processo única e exclusivamente político, iniciado na Câmara dos Representantes e julgado no Senado (onde o Partido Republicano está em maioria), é ingénuo acreditar que os congressistas republicanos vão algum dia apoiar uma jogada tão radical como essa sem a existência de "cassetes" comprometedoras – sejam elas feitas em áudio, em vídeo, por escrito ou desenhadas.

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