Todos iguais, todos iguais — até que apareceu alguém diferente

Houve Michael Bublés vindos da Eslovénia, Florence + The Machines chegadas da Islândia, malabarismos vocais e muitas coreografias. Tudo como esperado. Até que, de repente, apareceu um cantor, Salvador Sobral, e uma canção. Parece pouco, mas é muito neste contexto de pobreza espectacular.

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Salvador Sobral foi apurado para a final da Eurovisão, que se realiza este sábado Reuters/GLEB GARANICH

Correu tudo como esperado. Houve pirotecnia, malabarismos vocais e coreografias de encher o olho, ainda que não fosse totalmente perceptível o que se pretendia comunicar com as ditas coreografias. Houve momentos homoeróticos, com um senhor montenegrino envergando malha transparente enquanto rodava a sua gigantesca trança, e um espaço para nostalgia patrocinado pela Grécia, cuja cantora afirmava que sim senhor, “this is love”, enquanto a batida eurodance recordava viagens de finalistas britânicas nas ilhas gregas, ano 1993. Houve Michael Bublés vindos da Eslovénia, Florence + The Machines chegadas da Islândia, Adeles checas e uma Marion Zimmer Bradley albanesa vestida de hard-rock entre as brumas de Tirana.

Em suma, houve Festival da Eurovisão, esse que já há muito fomos esquecendo que existia, exceptuando o momento em que o feed das redes sociais nos dava conta de que a vitória da austríaca Conchita Wurst  acendera o debate sobre identidade de género e que poderia ajudar a vencer preconceitos que não deveriam ter lugar no século XXI, ou que a canção que levou a edição deste ano da Eurovisão para Kiev, 1944, era mais uma arma usada como combate político entre duas nações em conflito, a Rússia e a Ucrânia. Recordamo-nos dos casos, mas lutamos para encontrar na memória um vestígio, um acordezinho, um som que seja, das canções associadas.

Todos sabemos que o Festival da Eurovisão é, desde a sua fundação, um programa de entretenimento que se pretende popular e abrangente. Juntam-se as gentes do continente em frente da TV (e agora a Austrália, que ganhou direito a entrada por ser fã incondicional do certame), oferecem-se-lhes canções e, com sorte, algumas delas ficarão guardadas na memória colectiva. Desde há muito, porém, que pouco há a guardar. A padronização da produção musical ali apresentada aumentou na mesma medida em que cresceu a parafernália de palco, as coreografias dos corpos de baile, a espectacularização das apresentações. É certo que o Festival da Eurovisão sempre teve algo de kitsch, o que faz parte da sua identidade e até deve ser prezado, mas transformou-se em kitsch armado em modernaço, o que, convenhamos, não tem piada nenhuma. É só tão triste e provinciano como as novas tascas “gourmet” armadas em coisa típica.

Nisso, o Festival da Eurovisão, ou o nosso Festival da Canção, neste caso com rumo em boa-hora invertido este ano, seguiu o mesmo percurso que a música tem seguido nos canais televisivos generalistas. E é por isso que ver Salvador Sobral, só ele e uma canção com travo a standard, ou seja, intemporal, só ele e aquela voz delicada sobre o arranjo de cordas e a gentileza do piano, ele que serve a canção, que se enleva nela, não recusando um par de imperfeições (técnicas, dir-se-ia) que só a enriquecem, tornando-a mais genuína, é um bálsamo. Estamos tão habituados a plástico e maquilhagem que, quando vemos pele e um coração que bate, nos comovemos instantaneamente.

Salvador Sobral participou há oito anos num programa televisivo de talentos. Detestou a experiência. Naturalmente, podemos acrescentar agora que o conhecemos melhor, agora que sabemos como é avesso a essa desvalorização da música às regras da cultura de celebridades. Na verdade, nenhum programa daquele tipo é sobre música. São reality shows de formatação de talentos, onde se mimetizam figuras da história da música passada ou recente. No processo, encaminha-se progressivamente o concorrente para uma linha de montagem de onde é eliminada a possibilidade de o diferente desabrochar, de se acender uma faúlha de individualidade. No fundo, vê-se ali o que se pode ver todos os dias em bares de karaoke de norte a sul, mas com produção de topo e emissão televisiva para todo o país.

A Eurovisão, não sendo concurso de formatação de talentos, é, com mais trança gigante ou menos pirotecnia, uma representação ainda maior desse sintoma. Polémicas à parte, todos iguais, todos iguais — e, viva a diversidade!, todos a cantar em inglês. Agora, saído de um Festival da Canção português de espírito renovado e a contraciclo de toda esta lógica, apareceu alguém diferente. Parece pouco, mas neste contexto de pobreza espectacular, já é muito. Ganhámos uma canção — há quanto tempo não podíamos dizer algo assim?

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