No mais político dos festivais, a música segue dentro de momentos

Depois de vencer no ano passado, a Ucrânia organiza a edição deste ano da Eurovisão. A organização quer a política fora de palco, mas a exclusão da concorrente russa deixa a tensão no ar. Salvador Sobral canta esta terça-feira, na primeira eliminatória.

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EPA/SERGEY DOLZHENKO

Pode um país com parte do território ocupado por forças militares rebeldes, embrenhado num conflito com uma potência nuclear e na ressaca de uma crise económica profunda, preocupar-se em organizar o maior concurso musical da Europa — e manter a política fora de palco? Apesar do desafio monumental, a Ucrânia quer mostrar que sim. Kiev recebe a partir desta terça-feira as semi-finais e a final do Festival da Eurovisão (sábado); o representante português, Salvador Sobral, sobe também esta terça-feira ao palco.

Entre os organizadores, o mantra é repetido continuamente: o concurso não tem qualquer conotação política ou religiosa. Mas é longa a lista de edições que ficaram marcadas de alguma forma pelo ambiente político vivido na Europa na época. Este ano, porém, a Eurovisão está prestes a celebrar o concurso onde a carga política é, muito provavelmente, a mais forte das últimas décadas.

Sobre o festival que tem como objectivo declarado festejar a unidade dos povos europeus paira, desde logo, a sombra da polémica que culminou com a exclusão da concorrente russa, Julia Samoilova, no final de Março. O facto de a cantora de 28 anos ser paraplégica por causa de uma doença congénita vem tornar o caso ainda mais delicado, especialmente à luz do lema escolhido para a edição deste ano, “Celebrar a diversidade”.

Na base da exclusão está uma visita que Samoilova fez em 2015 à Crimeia, onde deu um concerto, já depois da anexação pela Rússia, que não é reconhecida nem por Kiev nem pela esmagadora maioria dos membros das Nações Unidas. A lei ucraniana considera ilegal qualquer entrada na Crimeia que não seja através do seu território, mediante um pedido expresso feito junto do Governo, explica a ministra-adjunta para a Política de Informação, Emine Dzhaparova, que nega tratar-se de uma “proibição destinada apenas a cidadãos ou artistas russos”. Samoilova viajou para a Crimeia directamente a partir de Moscovo, violando desta forma a lei ucraniana, o que deu origem à proibição de entrar na Ucrânia por um período de três anos.

O mesmo aconteceu a uma série de outros artistas russos e políticos, que visitaram a península no Mar Negro através da Rússia. “Sendo uma personalidade pública é mais fácil saber se a pessoa esteve na Crimeia sem ser através do território ucraniano”, esclarece Dzhaparova, ela própria natural daquele território.

A União Europeia de Radiodifusão (UER) – organismo que agrupa as cadeias públicas de televisão e que desde 1956 organiza o festival — ainda tentou encontrar uma solução consensual, abrindo a possibilidade de Samoilova participar a partir de Moscovo, via satélite, ou de o canal russo enviar outro concorrente. Ambas as hipóteses foram recusadas pela Rússia, que fica assim sem representação no festival de Kiev. Em resposta, o Canal Um russo decidiu não transmitir a Eurovisão e garantiu que Samoilova irá representar o país na edição do próximo ano. A partir desse momento, a mira dos órgãos de comunicação detidos pelo Kremlin passou a estar apontada à organização da Eurovisão como, por exemplo, a propagação de notícias sobre “bilhetes falsos” e “outros escândalos” em torno da organização do festival.

Para o Governo ucraniano, trata-se da continuação da “campanha de desacreditação da Ucrânia pela Rússia”, diz Dzhaparova. “Eles tentam mostrar-nos como nazis, neo-fascistas, extremistas.”

Estava lançado o espectro da “politização” que a UER tanto temia. No início de Abril, a directora do organismo, Ingrid Deltenre, enviou uma carta ao canal público ucraniano, UA:PBC, onde não escondeu a frustração por a competição estar a ser “usada como munição no confronto entre a Rússia e a Ucrânia” e deixou a ameaça velada de excluir a participação ucraniana em futuras edições da Eurovisão.

O produtor-executivo da edição deste ano, Pavlo Gritsak, garante que as relações entre o canal público ucraniano e a UER não foram afectadas pelo caso de Samoilova. “Estamos ambos focados em ter um espectáculo de televisão bem-sucedido em Kiev e é nisso que trabalhamos todos os dias”, diz, durante um encontro com um grupo de jornalistas na capital ucraniana.

“Dadas as várias crises pelas quais o mundo está a passar, este concurso parece ser especialmente político”, diz ao Politico o professor de história contemporânea da Universidade de Viena, Dean Vuletic. Mas não é algo de novo. Um festival de música que todos os anos junta dezenas de países com rivalidades e amizades históricas como pano de fundo seria sempre um terreno favorável à politização.

Festival da Europolítica

A exclusão de concorrentes não é sequer inédita por motivos políticos. Em 2009, a música escolhida para representar a Geórgia foi vetada pela UER, que viu na letra do tema “Put in Disco” uma pouco subtil referência ao Presidente russo, Vladimir Putin, que meses antes tinha lançado uma operação militar naquele país.

Os organizadores tentam ao máximo conter as mensagens que possam ter uma interpretação política. Nas semanas que antecedem o concurso, os produtores do concurso analisam as propostas de actuação de cada uma das delegações e fazem contrapropostas, com o objectivo, por exemplo, de evitar repetições no jogo de luzes ou de efeitos. “Cada país é responsável por apenas três minutos de uma emissão de sete horas e a nossa responsabilidade é organizar um espectáculo como um todo”, explica-nos o produtor da edição deste ano da Eurovisão, o sueco Christer Bjorkman, que já liderou a equipa de produção em anos anteriores.

Esse trabalho de preparação inclui também o cuidado para remover potenciais símbolos políticos, embora Bjorkman admita que se trata de “um campo minado”. “Há certos países que não gostam de algumas cores”, explica.

Nem sempre é possível evitar surpresas. Em 2000, os concorrentes israelitas acabaram a sua actuação agitando bandeiras da Síria, para acentuar a sua mensagem pacifista. O acto foi encarado como uma provocação pelo canal público israelita que retirou o seu apoio ao grupo, que tinha decidido concorrer como uma piada.

Nos primeiros anos do concurso, a Eurovisão era uma rara oportunidade para que sociedades mais fechadas, como a portuguesa e a espanhola, ambas controladas por ditaduras tivessem acesso a um palco internacional para passar alguma mensagem. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a música “O Vento Mudou”, interpretada pelo cantor nascido em Angola, Eduardo Nascimento, em 1967, em plena Guerra Colonial. Anos depois, em 1974, Paulo de Carvalho cantava “E Depois do Adeus”, a música que, semanas mais tarde, seria usada pelo Movimento das Forças Armadas como a senha que desencadeou a Revolução dos Cravos. Até ao momento não se conhece outra música que tenha figurado num festival da Eurovisão a dar início a uma revolução.

Uma das mensagens que se confunde com a própria Eurovisão é a defesa dos direitos LGBT. É sabido que o concurso é seguido religiosamente por grande parte da comunidade homossexual por toda a Europa. Esta base de apoio solidificou-se durante os anos 1970, quando a Eurovisão começou a tornar-se num marco para o crescimento de muitos homossexuais durante esse período, explicava em 2015 à France 24 o professor do Trinity College, em Dublin, Brian Singleton.

“As pessoas que cresceram durante aquele período, incluindo eu próprio, tinham acesso apenas aos canais nacionais. E, durante uma noite por ano, podíamos ver pessoas de outros países e de outras culturas e quão diferentes eles eram”, diz Singleton, que escreveu um artigo sobre a Eurovisão para a Society of Queer Studies Journal.

Desde então, a defesa dos direitos LGBT tornou-se um dos poucos temas políticos que a organização da Eurovisão não receou abraçar. A actuação da austríaca Conchita Wurst, vencedora do concurso em 2014, foi o culminar desta tendência, defendida pelos organizadores mesmo perante a oposição de alguns países. Em 2013, o canal público turco recusou transmitir o concurso por causa de um beijo lésbico presente numa das actuações. “A aspiração em superar as diferenças foi sempre uma parte importante do concurso e é mais relevante hoje do que nunca”, disse ao Politico o chefe de comunicação da UER, Dave Goodman.

Mostrar a nova Ucrânia

O espectro da politização na edição deste ano dura, na verdade, desde a anterior, quando a cantora ucraniana Jamala venceu a Eurovisão com a música “1944”, que conta a história da deportação da população tártara da Crimeia por ordem de Estaline. A delegação ucraniana insistiu que a letra da música se limita a uma história pessoal — alguns antepassados de Jamala foram vítimas da deportação – mas não se livrou das acusações de estar a usar um episódio histórico para chamar a atenção para os desenvolvimentos recentes na Crimeia. A Rússia ficou especialmente furiosa com a vitória de Jamala no concurso do ano passado, acusando a Ucrânia de tornar a Eurovisão numa “arena para conflitos políticos”.

A vitória de Jamala foi recebida com entusiasmo pelos ucranianos, desmoralizados pelo conflito que grassa há já três anos no Leste do país e em que já morreram dez mil pessoas. Organizar a Eurovisão neste contexto tem necessariamente um significado especial, admite a ministra Emine Dzhakarova, embora não o queira transformar em “plataforma política”. O grande objectivo é mostrar Kiev como uma cidade segura, moderna e europeia, contrariando a espiral de notícias negativas que envolvem a Ucrânia, e que invariavelmente envolvem a guerra, a corrupção da classe política ou a crise económica.

Porém, a própria organização tem encontrado alguns problemas que reflectem o estado do país. Em Fevereiro, 21 elementos da equipa da televisão pública que está a organizar o festival apresentaram a demissão em bloco, em rota de colisão com a chefia do canal. Pavlo Gristak diz que o impacto das saídas foi sentido sobretudo “ao nível das relações públicas”.

“Às vezes tenho a sensação de que isto é um diamante, mas que ninguém conhece.” O desabafo é feito por Volodimir Ostapchuk, um dos três apresentadores do festival – pela primeira vez, a Eurovisão não vai ter qualquer mulher a apresentar, algo que a organização diz ter sido um acaso. Os três apresentadores são eles próprios uma personificação da imagem que a Ucrânia quer passar durante os próximos dias: jovens, urbanos, cosmopolitas, fluentes em inglês.

“Temos de mostrar que apesar de todos os problemas, podemos sorrir, podemos dançar e cantar”, continua “Vova”. As apertadas regras impostas pela UER impedem-nos de abordar a exclusão de Samoilova, mas não é de política que os três showmen querem falar. “Conseguem imaginar um spot publicitário de três horas a promover a Ucrânia emitido em todo o mundo?”, pergunta “Vova”. “É nisso que pensamos quando pensamos na Eurovisão.”

O jornalista viajou a convite do Ukraine Crisis Media Center

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