O psicadelismo é do povo

No palco do Coliseu, os Capitão Fausto conseguiram casar as canções de outros tempos, mais expansivas, com a tarimba mais sossegada e perfeccionista de Têm os Dias Contados.

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Os Capitão Fausto são psicadélicos, sim, mas o psicadelismo dos rapazes de Lisboa é quase sempre vertido para matéria pop, democrática, trauteável pela multidão. Jornal PÚBLICO

A noite era de gala. Eles, aprumados, alguns de fato, todos janotas. O palco para a banda mudado de sítio, posto no centro do Coliseu dos Recreios, bem ao jeito de circo natalício. O público à volta do grupo, com manifestações de júbilo e frenesim adolescente e pós-adolescente. O palco tradicional reservado para nove músicos, divididos entre clarinete, oboé, trompete, trompa e mais pompa orquestral. Uma gala justificadíssima pelo curso da história da música pop-rock portuguesa: disco após disco, os Capitão Fausto garantiram um lugar nela.

Cumpriram o que prometeram em entrevista ao PÚBLICO: “uma celebração para todos”, banda, família, fãs. Soubemo-lo mal entraram por um túnel, quais craques da bola, rumo ao palco e se atiraram a Corazón. O povo canta a melodia barroca, maravilhosamente antiquada, e entoa com Tomás Wallenstein “Pontas soltas, isso é comigo” – o refrão alimentado a miminhos de órgão.

Capitão Fausto Têm os Dias Contados, o melhor álbum dos Fausto e um dos melhores de 2016, onde está Corazón, foi visitado na íntegra. Morro na praia mostrou-se em glória plena, com a miniorquestra a aprumar o refrão e incontáveis jovens adultos a desabafar em voz alta “Trabalhar nunca me fez bem nenhum”. “Parece que estamos numa sala de ensaios”, diria o baixista Domingos Coimbra, a três metros da primeira fila. Em Mil e quinze, as guitarras de Wallenstein e Manuel Palha roçaram-se com o baixo de Coimbra até que a canção desacelerou e despontou um coro de bondade: “Cada um no seu lugar/ Enquanto houver amor pra dar”.

No palco do Coliseu, os Capitão Fausto conseguiram casar as canções de outros tempos, mais expansivas, com a tarimba mais sossegada e perfeccionista de Têm os Dias Contados. Disso foi exemplo a forma como ligaram a lambada psicadélica de Santa Ana (como mandou Wallenstein, ninguém parou de dançar), recuperada a Gazela, a estreia de 2011, a Tem de Ser, balada onde há “piroseiras”, casamentos num barco a vapor e um solo de guitarra digno de lounge. A banda que faz as canções suaves de Têm os Dias Contados é a mesma que, há dois anos, inventou Lameira, que no palco do Coliseu soou ainda mais megalómana – sintetizadores em explosões cósmicas, flauta, oboé, trompa e demais instrumentos a abrir um buraco negro que anulou os egos e libertou os corpos.

Os Capitão Fausto são psicadélicos, sim, mas o psicadelismo dos rapazes de Lisboa é quase sempre vertido para matéria pop, democrática, trauteável pela multidão. Maneiras más podia ser um exercício krautrock (a batida metronómica) e psicadélico (o órgão libertário), mas nem a banda nem o público permitiram o devaneio. Célebre batalha de Formariz, já no encore, soou imperial, precisa, mas, de novo, pop. Semana em semana foi cantada como hino da geração recibos verdes: “Se eu tenho o fisco à porta devo ser ladrão”.

A celebração dos Capitão Fausto foi também consagração. Sabemo-lo quando centenas de isqueiros e telemóveis improvisam uma constelação durante Alvalade chama por mim, canção que justifica tamanhos encómios visuais (“Nunca esquecer que a mocidade para nós chegou ao fim”, canta Wallenstein). Sabemo-lo quando participamos no arrepio colectivo iniciado quando a guitarra lança Amanhã tou melhor, que é, pelo menos, a melhor canção portuguesa de 2016. Acontece magia pop: está um Coliseu inteiro sintonizado numa canção, nos “pa pa pa” que agraciam os versos, no refrão de vozes contrapostas com sabedoria de quem ouviu todos os discos certos, na escalada de teclas rumo a uma felicidade estúpida, uma felicidade tão plena como fugaz. Há lá coisa mais pop do que essa? 

 

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