Os Capitão Fausto deixam gloriosamente as saias da mãe

Em pouco mais 30 minutos, fazem desfilar um conjunto de canções de uma perfeição quase inacreditável. Um álbum radioso em que matam a sua mocidade e aceitam, no meio de dúvida e confusão, a assunção plena da vida adulta.

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Ao terceiro álbum, magnífico compêndio de primorosas canções que parecem vindas de outro tempo, o quinteto vai-nos lançando pistas sobre a despedida de uma primeira juventude

Capitão Fausto Têm os Dias Contados anuncia logo ao que vem. No seu primeiríssimo verso, ainda mal os instrumentos foram desemalados, ainda parecem estar a afinar agulhas enquanto se livram do pó, e já Tomás Wallenstein está a cantar “Trabalhar nunca me fez bem nenhum”, para pouco depois concluir “Ao menos vou gastar o tempo todo a cantar”. Ao terceiro álbum, magnífico compêndio de primorosas canções que parecem vindas de outro tempo, o quinteto vai-nos lançando pistas sobre a despedida de uma primeira juventude que se esgota permanentemente em fundo, sobre uma entrada forçada e conflituante no mundo adulto, um mundo em que o fisco bate à porta e trata como criminosos de colarinho branco pequenos faltosos (Semana em Semana) e em que parar de crescer será morrer “por debaixo das saias da mãe, onde eu ‘tou tão bem” (Os Dias Contados).

Quando pouco mais de meia hora depois da frase inicial os Capitão Fausto repetem “Nunca esquecer que a mocidade para nós chegou ao fim”, essa é apenas a estocada final na juvenilidade, já refeita do choque das cartas registadas com contas para pagar, entregue mais a uma domesticada melancolia, última paragem de um percurso que termina em Alvalade Chama por Mim e se inicia em Morro na Praia (“Adio mais um dia perceber / que aos vinte seis não posso mais empatar. Assumo o compromisso, deixo as nuvens entrar”). A cada esquina de Dias Contados, emergem dúvidas, inseguranças, planos que saem furados, aceitação hesitante de um destino, tudo embrulhado em canções saídas de uma pop idílica.

“Estamos todos num período de transição, estamos todos a começar a sair de casa”, justifica Tomás Wallenstein, voz e guitarra. Francisco Ferreira, teclista do grupo, confessa que esta temática acabou por se impor porque é isso que lhes invade os dias “e não de uma maneira levezinha, que aconteça só de vez em quando”. Estão os dois sentados numa esplanada a escassos metros da sala de ensaios do grupo – onde o álbum foi gravado e criado quase por inteiro. “Uma das ideias é virmos aqui para Alvalade, estarmos no bairro, apropriarmo-nos um bocadinho disto”, acrescenta o vocalista. “Estamos perante a situação de nos independentizarmos com as condições que existem.”

Há dois anos, quando os Capitão Fausto lançaram Pesar o Sol, estavam ainda a estudar, gozando da compreensão parental para a constante intromissão da música no seu percurso académico. Afinal, feitas as contas, foram os pais a mostrar-lhes boa parte da música que lhes alimenta a criação, vivendo com os ouvidos frequentemente enfiados nos anos 60 e 70. “Sinto que estou prestes a tornar-me um pai porque oiço cada vez mais rock de pai”, ri-se Francisco, citando Neil Young, The Band e Fleetwood Mac como parte da sua dieta essencial. “Honestamente”, diz ainda Tomás, “não teríamos a oportunidade de ter feito isto durante os anos que fizemos – e até fica um bocadinho mal dizer – se não fôssemos miúdos burgueses. Há quatro anos teríamos tido de nos safar e não teríamos tantas horas para dedicar à música. A mimalheira serviu-nos, mas temos de arranjar uma maneira de não continuar por aí, já foi tempo suficiente.”

Acabou-se a saia da mãe, o cordão umbilical está cortado em definitivo, a situação é outra. Terminados os estudos, os Capitão Fausto são, fatalmente, músicos profissionais. “Portanto, agora é a valer, estamos a aperceber-nos da missão que é não pervertermos as nossas convicções”, dizem. “Queremos fazer isto por prazer e agora a verdadeira luta é tentar fazer com que o prazer nos deixe viver. Temos de perceber como não entramos em esquemas que nos obriguem a entrar em rotinas e a fazer isto como produção em massa.” E essa é uma nova incógnita na vida do grupo, preocupação aumentada pelo conhecimento que têm da história do rock e de todos os casos que descarrilaram assim que alguma rigidez foi introduzida numa vida outrora livre. Até agora, a disciplina fazia parte de levar a banda a sério e ser necessária para que a criação pudesse evoluir, mas deixados os estudos para trás e avançando para uma vida independente, o prazer já não está sozinho, tem a responsabilidade por companhia.

“Olhando para trás, podíamos ter sido bastante mais profissionais, se calhar fomos um bocado baldas, ensaiámos pouco ou tratámos mal da parte do negócio disto”, diz Francisco. Mas claro que essa inocência foi fundamental para a própria natureza da música, para não se tornar assunto demasiado sério de forma prematura e para que, na verdade, a juvenilidade que agora matam tivesse oportunidade de viver.

Operação de limpeza

Antes destas “dores de crescimento”, como lhes chamam, nunca as guitarras dos Capitão Fausto se tinham passeado com um tão claro freio nos dentes. Reflexo natural não apenas de um ímpeto juvenil mais controlado, baixando a intensidade e a urgência das canções, mas também da normal necessidade de buscar novas soluções dentro de um mesmo contexto de grupo. O que passou também por uma cuidada operação de limpeza. Para cada uma das oito canções de Dias Contados os Capitão Fausto gravaram oito ou nove versões ao longo do processo procurando ser “um pouco mais sintéticos”. “Quisemos quebrar com o que fizemos no outro disco”, explica Francisco. “Não porque não gostemos dele, mas para nos sentirmos um pouco refrescados nesta coisa de reduzir tudo ao essencial. Há umas quantas músicas que foram rapadíssimas no processo.”

A opção por não parar na primeira versão encontrada e a possibilidade de fazer a pré-produção no estúdio próprio foram permitindo olhar repetidamente para cada uma destas canções radiosas e puxar-lhes o lustro, testar-lhes as qualidades, dar-lhes tempo para que fossem estabelecendo entre si vasos comunicantes. “À medida que fomos tendo ideias, estas iam surgindo já contaminadas pelas anteriores, por isso acho que existe uma certa unidade no disco, porque a primeira canção contribuiu para a segunda, a segunda para a terceira…”, diz Tomás.

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Nessa contagem de espingardas, o desbastar de camadas da música a cinco foi criando um espaço que arriscam agora ocupar com arranjos para sopros e cordas, pensando a música para além das suas sonoridades e capacidades naturais de executantes. “Não temos de ser imediatos e fulminantes”, como o eram no passado, considera o vocalista. “Podemos ser cautelosos e calculistas.” O resultado é uma sonoridade mais pop, “uma estética mais abarrocada, ornamentada e uma maneira mais delicada” de se lançarem sobre as canções.

Essa tendência natural e procura por uma sonoridade que os aproxima, a espaços, do frenesi grandioso a que se entregavam Beach Boys e Beatles na batalha por uma complexificação da música pop sem que deixasse de germinar canções de apelo popular, mas também dos caminhos menos directos procurados pelos Blur (vestígios encontrados nas guitarras, nos sopros e nos coros de Morro na Praia, Semana em Semana ou Alvalade Chama por Mim), tem como justificação provável a emergência no último par de anos dos projectos paralelos Os Modernos, Bispo e El Salvador. “Com essas outras bandas exorcizámos imensas músicas ou géneros que queríamos fazer, desde o mais barulhento, punk e simples com Os Modernos e El Salvador”, compara Francisco, “ao mais electrónico e de dança sem voz com Bispo. O facto de termos deitado para fora essa necessidade de fazer música fez com que não sentíssemos isso em relação a Capitão Fausto. Sem o desejo e o tempo de fazer essas bandas provavelmente este disco teria soado a uma mistela de tudo. Seria o nosso único escape.”

Só que não soa a mistela, soa antes ao disco mais límpido que poderiam ter feito. Em vez de punk e rude, Dias Contados tem a luz da estreia dos Thrills (Amanhã Tou Melhor ou Tem de Ser), chega a convocar a miragem dos Prefab Sprout de From Langley Park to Memphis (Os Dias Contados) e nunca se complica desnecessariamente, mesmo quando se deixa infiltrar pela costela barroca (Semana em Semana e Corazón são certamente das canções mais devastadoramente belas que se pode imaginar), consequência possível das viagens recorrentes no carro do guitarrista Manuel Palha, onde só se ouve música clássica – “é portanto inevitável que Debussy, Satie, Saint-Saëns ou Poulenc entrem também para a lista da música pop”, reconhece Wallenstein. Vale tudo, felizmente, neste disco que começa hoje a ser mostrado ao vivo na Casa da Música, passando depois por Montijo (22), São João da Madeira (23), Viseu (24), Lisboa (28), Leiria (30) e, em Maio, Évora, Pinhal Novo, Viana do Castelo, Braga e Coimbra.

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A ajuda de Syd Barrett

Calhou bem que o início do processo de composição de Dias Contados tenha coincidido com o desafio de Pedro Ramos para que dedicassem uma noite na discoteca Lux à obra de Syd Barrett, ponte entre os Pink Floyd e o psicadelismo em The Piper at the Gates of Dawn e fazedor de canções de absoluta delícia a solo nos pouco anos que anteciparam a sua desistência de viver em sociedade. Estavam ainda sem ideias, “na fase de olear a máquina”, quando se enfiaram durante um mês na música de Barrett e dos Floyd inaugurais, algo que os ajudou a limpar a cabeça e interromper a frustração mais imediata de as canções não terem então começado a surgir.

Quando voltaram, tudo foi mais fácil. Ao partirem para o retiro em Vascões, isolados no meio do Minho, onde Pesar o Sol foi quase integralmente composto, o álbum já estava em marcha, faltava atar as pontas soltas – “pontas soltas isso é comigo / p’ra estragar um disco tenho-me a mim”, canta Tomás Wallenstein, num acesso de uma imerecida manifestação de baixos níveis de amor-próprio –, adicionar mais dois temas novos e prosseguir na lavagem sonora que empreendem em Dias Contados. Desta vez, no entanto, não houve lugar a nenhuma “Célebre Batalha de Formariz” – nem na intensidade do single de Pesar o Sol, nem nas intenções mal interpretadas que acabaram, qual momento de faroeste norte-americano, com a expulsão do grupo de uma aldeia com os populares em revolta.

“Nessa altura”, recorda Francisco, “houve um pequeno conflito entre nós, mas no dia seguinte dissipou-se. “É uma prova de que tenho confiança que conseguimos aguentar muito mais juntos.” Descansemos, pois, que os dias dos Capitão Fausto apenas estão contados no que toca à mocidade. Alvalade, as contas para pagar e uma outra vida esperam-nos.

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