Transparência ou o governo da “Caixa negra”

A salvação da Caixa e do sistema bancário português em nada reclama ou exige a outorga aos seus gestores de uma isenção dos deveres de transparência.

1. Queria deixar claro que não pertenço ao grupo dos que bramem e rasgam as vestes por causa da política de remunerações que o Governo escolheu para a Caixa Geral de Depósitos. Seria possível ter encontrado um critério mais equilibrado, baixando a parte fixa e aumentando a parte que varia em função dos resultados obtidos. Mas não ponho em questão a autonomia do Governo ter decidido como decidiu. E registo com justiça que, neste particular, não escondeu nada e assumiu sem subterfúgios o preço político a pagar por esta opção.

2. O caso muda de figura – e muda radicalmente de figura –, quando se olha para a forma como Costa e Centeno lidaram e continuam a lidar com as obrigações de apresentação de declarações de rendimentos e de património. Não há nenhuma razão para subtrair os gestores da Caixa às obrigações que universalmente se impõem a quem exerce um múnus público ou o faz em nome do Estado. Nenhuma. Repito: nenhuma.

3. Devo dizer que, em matéria de estatuto dos titulares de cargos políticos e de alta gestão pública, nunca defendi um aperto e uma restrição das condições de acesso e de exercício. Penso que a deriva populista em direcção à criação de uma classe política profissional é o corolário de uma sociedade partidocrática, sem nenhuma abertura à sociedade civil e ao arejamento das castas e dos aparelhos partidários. É o caso típico do estabelecimento proibitivo de incompatibilidades em cargos não executivos que, no limite, leva à estrita funcionalização partidária de todos os postos do Estado. Mas sendo um convicto e público adepto – dos poucos que ainda restam – desta profunda abertura institucional, sou em contrapartida um fervoroso defensor do reforço e da qualificação das regras e dos sistemas de transparência. A melhoria das garantias de transparência, quando olhamos para os Estados com os quais vale a pena compararmo-nos, não tem nada de revolucionário ou inovador. Basta atentar no exemplo dos países nórdicos para ver como a ideia de transparência atravessa todo o espaço público com evidentes ganhos em sede de desincentivo a más práticas e até a práticas criminosas.

4. Reconheço que a exposição pública dos responsáveis políticos e dos altos responsáveis administrativos é talvez hoje a maior barreira à migração de quadros da sociedade civil para a política, para a gestão de empresas de cariz público ou para organismos da administração pública. Em muitos casos, não é efectivamente o quadro remuneratório – quase sempre bem menos atractivo do que vigora no sector privado – que afasta os melhores das funções públicas. É, antes do mais, a devassa da vida privada, com entradas – ainda que, em Portugal, felizmente menos comuns – na esfera da vida pessoal. Mas é também seguramente a exposição da situação económica e patrimonial, que, obviamente, ainda que de modo mais indirecto, acaba por implicar uma intrusão na dimensão privada, pessoal e familiar. Evidentemente que, 1748686.

5. No coro de defensores da atitude inaceitável do Governo e dos gestores da Caixa de, respectivamente, isentar e aceitar ser isento destes deveres, vi três argumentos: voyeurismo, falta de eficácia dos controlos de transparência e a salvação in extremis da CGD. Quanto ao voyeurismo, pouco há a dizer: transparência é transparência. E estranho país que nunca se incomodou com o voyeurismo sobre os políticos e agora o erige em grande causa ética por obra e graça de um gestor bancário. Quanto à falta de eficácia do controlo – e especialmente da entrega de declarações no Tribunal Constitucional – é uma asserção verdadeira, mas não colhe. Por um lado, porque a solução não é suprimir o controlo, é torná-lo realmente eficaz. Era, aliás, onde queria chegar quando aqui acima falava no reforço e qualificação dos mecanismos da transparência.  Por outro, porque há sempre um efeito dissuasor sobre o próprio com o acto da entrega, há outrossim um efeito simbólico de cariz público, que não pode ser negligenciado, e há finalmente um imperativo de igualdade cidadã, que não pode ser simplesmente afastado. Na verdade, alguém há-de ainda explicar qual é a razão que justifica um regime excepcional para os administradores da Caixa? As normas excepcionais hão-de ter uma ratio excepcional. Qual é essa razão, para lá de um arbitrário instinto de auto-protecção dos respectivos gestores? Alguém sabe? Por fim, temos a consagração desta excepção como ultima ratio da salvação da Caixa é um argumento terrorista e até “chantagista”. A salvação da Caixa e do sistema bancário português em nada reclama ou exige a outorga aos seus gestores de uma isenção dos deveres de transparência.

6. Os administradores de um banco público não estão, não podem estar e – mais importante – não devem estar isentos das obrigações de transparência aplicáveis a todos aqueles que têm responsabilidades especiais na esfera política e pública. Um Governo que quer meter estas obrigações na “caixa negra”, seja através de matreirice jurídica, seja tentando lavar as mãos e imitando Pilatos como fez António Costa, coloca-se numa posição insustentável do ponto de vista dos pilares do Estado de Direito.

Mas, para lá e mais fundo do que isso, há algo que verdadeiramente lamento, que me dói e mói, que me dá tristeza e pena. Que elites são estas que temos, políticas e financeiras, que, decerto competentes, sérias e com vontade genuína de servir a causa pública, tudo fazem para dar e obter um regime de privilégio e escapar a umas quantas obrigações declaratórias? E que não hesitam em fazê-lo com reserva mental e requintes de esperteza? Com elites destas, para além de sermos um país pobre, encaminhamo-nos a passos largos para ser um pobre país.  

SIM e NÃO

SIM. Durão Barroso. O comité de ética ad hoc consultado por Juncker só veio dizer o que toda a gente sabia. Finalmente, algum reparo, alguma justiça. Pena que Juncker não tenha visto a tempo com os seus próprios olhos.

NÃO. FBI e eleições americanas. A investigação de última hora do FBI sobre os e-mails da candidata Clinton é obscura e chega a ser suspeita. O processo eleitoral está no nível mais conspirativo e baixo de sempre.  

 

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