O ovo cozido perfeito é o seu

Saborologia é uma série de quatro curtos documentários sobre a ciência do sabor. Além de reputados chefs, entre os quais o químico francês considerado pai da gastronomia molecular, conheça a verdadeira identidade de Jacques La Merde, um “gastrofísico”, artistas de sobras e activistas.

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Ovo na mão de Hervé This Rui Gaudêncio/Arquivo
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Miyamousou fica no meio da floresta e nos pratos que serve só cabem ingredientes “selvagens” colhidos num raio de dez quilómetros DR
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As “artistas de sobras”, Tanja Krakowski e Lea Brumsack, usam legumes tortos e fundaram a empresa Culinary Misfits, em Berlim DR
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Conseguir que os alimentos durem três vezes mais pode depender de algo tão simples como a prateleira que escolhemos no frigorífico DR
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No laboratório do químico Hervé This DR
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Christine Flynn ficou conhecida por usar ingredientes comprados numa estação de serviço DR

Sabe qual a orientação que deve dar aos ingredientes quando os coloca num prato? Sabe que a cor desse prato tem um efeito? Que a música que está a ouvir também? Sabe onde colocar os alimentos no frigorífico? E que temperatura exige um ovo cozido perfeito? Conhece a profissão “gastrofísico” ou “artista de sobras”? Outra coisa: a comida que deitamos fora pode resultar num caril para cinco mil pessoas e a junk food que está nas prateleiras de uma estação de serviço pode ser elevada a um nível soigné e ter milhares de fãs no Instagram. A série de quatro documentários chamada Saborologia, produzida pela empresa de electrodomésticos AEG, mostra-lhe algumas respostas da ciência na disciplina do sabor.

“Saborear uma refeição não é o mesmo do que comer.” A frase surge num dos episódios da série Saborologia, que será divulgada no YouTube. Trata-se de uma iniciativa da empresa AEG que, no final de cada um dos vídeos com cerca de 15 minutos, aproveita para dar uma dica culinária e um elogio ao seu forno, frigorífico ou outro electrodoméstico. Tirando isso, a marca não aparece nem se intromete em mais de uma hora de filme que funciona como um bom e bonito prato de comida com bons ingredientes. Cada episódio, filmado por uma equipa que durante oito meses viajou por três continentes, tem um tema: origem, frio, calor e experiência. Mas não pense em retirar daqui grandes receitas, o objectivo não é explicar como mas mostrar porquê.

O último episódio será um dos melhores exemplos dessa abordagem. É dedicado à experiência e fala sobre a intromissão dos quatro sentidos (além do paladar) no sabor do que comemos. Aqui ficamos a saber que tudo importa. Os ingredientes, claro, mas também a música que ouvimos ou, se preferir, o “tempero sónico”, a forma como se põe a comida no prato ou a cor do prato.

Charles Spencer, professor de psicologia experimental da Universidade de Oxford (Reino Unido), apresenta-se como gastrofísico. “O que significa que me interesso pelo estudo de qualquer associação surpreendente entre os sentidos.” Tem, em parceria com o chef Jozef Youssef, um projecto chamado Kitchen Theory. É ele que nos explica que as pessoas não gostam de ter a comida a apontar para si no prato, preferem linhas oblíquas e orientadas para a direita e que um prato branco resulta melhor do que um preto. São coisas que, garante Charles Spencer, influenciam o sabor da comida. “Não podemos ignorá-las”, diz, acrescentando que, por exemplo, “a percepção do saber doce é influenciado em cerca de 10% simplesmente devido à cor do prato”. A cor, diz, antecipa o sabor. As conclusões são resultado de testes feitos nos restaurantes de Jozef Youssef, que se apresenta como “chef multissensorial” e que está satisfeito por levar experiências para a mesa “em benefício da neurociência”.

Quem é Jacques La Merde?

É neste episódio também que conhecemos Jacques La Merde. É, mesmo assim que se escreve e diz. Na verdade, trata-se de Chistine Flyn, uma chef provocadora que decidiu brincar (ou gozar) com a cultura dos chefs. “Gozo com o facto de as técnicas definirem os ingredientes em vez de os ingredientes definirem as técnicas.” Christine Flyn decidiu ir buscar os ingredientes a uma qualquer estação de serviços e construir pratos com uma aparência digna de um menu de degustação. Fotografou-os e publicou-os numa conta do Instagram, assinando como Jacques La Merde. Tem mais de 100 mil seguidores e ali se podem ver produções como pão de forma da marca Wonder Bread partido à mão, caviar de mostrada amarela, pickles de cebola baby, coulis de ketchup Heinz, molho Miracle Whip, tiras minúsculas de pickles, Nachos Doritos Dinamita, com mostarda Cheez Whiz”. Chistine Flyn aka Jacques La Merde acredita que os versáteis doritos podem ser um miserável unami (palavra japonesa usada pelos chefs para um sabor agradável) e que é possível fazer cozinha soigné, ou cuidada, com produtos de uma estação de serviço. De lixo a luxo.

O primeiro episódio, sobre a origem, começa com uma imagem de vacas a pastar. E um primeiro dado: quando estão prenhas, as vacas comem mais trevos suculentos e alfafa. E uma primeira questão: porquê? Como é que o animal sabe que precisa de mais proteínas? “Através do sabor. O palato está em sintonia com as necessidades do corpo”, responde Mark Schatezer, jornalista, crítico gastronómico e autor dos livros Bife e Efeito Dorito.

Partimos para Quioto, Japão. E conhecemos um sorridente casal proprietário de um restaurante com duas estrelas Michelin. Miyamousou fica no meio da floresta e nos pratos que serve só cabem ingredientes “selvagens” colhidos num raio de dez quilómetros. Peixe, veado, ervas… O que fazem, explicam, é um pouco diferente da recolecção. O que fazem chamam de “tsumikasa”. Esclarecidos? Eles explicam: significa “caça com sentimento de gratidão”.

“Um dorito é cozinha molecular”

Voltamos ao jornalista Mark Schatezer e aos doritos. “Os aromas artificiais tornaram-se muito poderosos. É a linguagem do desejo que deixa a comida mais saborosa do que devia ser e foi assim que incentivámos milhões de pessoas a comer o que não deviam.” Quando falamos de reduzir os alimentos aos seus componentes químicos e depois partir para a sua adulteração, seja feito numa fábrica ou numa sofisticada cozinha de um chef, falamos de físico-química orgânica. Ou seja, nota o crítico, “um dorito é cozinha molecular”.

É a deixa para Hervé This entrar em cena. O químico francês considerado o pai da gastronomia molecular surge em vários episódios do documentário, sempre vestido de bata branca num laboratório que serve de cozinha (ou vice-versa) instalado no Instituto Nacional de Investigação Agrícola, em Paris. “A cozinha molecular é muito simples. Em vez de usar vegetais, frutos, carne, peixe e ovos para cozinhar, usa compostos”, diz, explicando que estes compostos alteram o sabor dos ingredientes tanto como o pó de caril ou a noz-moscada.

A segunda paragem nesta viagem pelo sabor é no território do frio. O tema é o desperdício e a conservação dos alimentos. Por isso, em Brighton, no Reino Unido, ficamos a conhecer o activista Tristan Stuart, que começou um movimento chamado Feeding the 5000. Partindo do princípio de que deitamos fora cerca de 1/3 dos alimentos que produzimos, Tristan Stuart reclama uma revolução contra o desperdício.

Um dos motivos para a comida acabar no caixote de lixo sem passar pelo prato é deixarmos que se estrague. E assim partimos para a Baviera, Alemanha, de onde chegam algumas dicas do especialista em carnes Ludwig Maurer. Conseguir que os alimentos durem três vezes mais pode depender de algo tão simples como a prateleira que escolhemos no frigorífico, avisa. Assim, diz Ludwig Maurer, o peixe e a carne, por exemplo, devem ocupar a parte inferior a baixas temperaturas (entre um e três graus Celsius), onde há mais humidade. A parte superior do frigorífico fica reservada para vegetais maduros e bebidas (quatro e cinco graus) e a porta para latas e frascos de vidro (cinco a sete graus). Ah… e cuidado com os tomates. É importante mantê-los separados de outros alimentos, pois têm uma grande quantidade de etileno, que pode fazer com que os seus vizinhos se deteriorem mais rapidamente.

Outra coisa que por vezes não chega aos supermercados e à nossa casa são os legumes tortos ou frutas com marcas. E para isso existem as “artistas de sobras” como Tanja Krakowski e Lea Brumsack, que fundaram a empresa Culinary Misfits em Berlim. No filme explicam, por exemplo, como fazer um cremoso batido que será saboreado sem que ninguém saiba que aquela cenoura tinha duas pernas.

O “ovo”, com amor

Hervé This regressa no terceiro episódio sobre o calor para responder a mais um porquê. Ou para quê, neste caso. Cozinhamos os alimentos para matar os microorganismos, para deixar os ingredientes mais leves e melhorar o sabor. O químico francês estuda há várias décadas os processos científicos por detrás da cozinha e é reconhecido em todo o mundo. “Entre 1996 e 1997 descobri que cozinhar não é uma questão de tempo, mas de temperatura”, avisa. E assim nasceu o ovo perfeito. Para demonstrar a sua teoria, Hervé This cozeu muitos ovos. A 61 graus Celsius, a 62,a 63, a 64… e por aí adiante, durante muitas horas. Para quem não sabe – e apesar de existirem opiniões divergentes de mais um minuto menos uns minutos –, normalmente nas nossas cozinhas cozemos um ovo em água a ferver (100 graus Celsius) durante uns dez minutos. O químico encontrou outra resposta. “Descobri que a 67, 68 graus a gema fica num creme suave que mantém a cor laranja mas com sabor de gema crua.” O “ovo perfeito” correu mundo.

A técnica de cozinha a baixa temperaturas é um dos velhos truques que os chefs hoje exploram nos seus restaurantes de luxo. A cozedura em vácuo (ou sous-vide) é um dos exemplos. E fica uma dica do documentário: para conseguir um bife mal passado sous-vide cozinhe a carne durante 60 minutos a 56,5 graus.

Hervé This não fala só do ovo. “Cozinhar a baixas temperaturas aplica-se a todos os tipos de proteínas.” Um quilo de carne por exemplo mantém este peso com esta técnica, mas se for sujeita a altas temperaturas pode ficar reduzido a 700 gramas quando sair do forno. Para os vegetais, esta técnica já não serve. Uma cenoura cozida em lume brando, a cerca de 50 graus durante 20 minutos fica dura como pedra, avisa o “pai da gastronomia molecular”. Para o químico, há cinco maneiras de cozinhar os ingredientes. Com calor sólido, com calor líquido, com calor gasoso, com radiação e com química, o que quer dizer (na nossa linguagem comum), algo como grelhar, fritar, cozer, microondas, e uso de ingredientes como ácidos, sal, açúcar para, por exemplo, conseguir um pickle.

No documentário, Hervé This cozinha alguns ingredientes nas panelas e frigideiras que estão na bancada de laboratório. E, no final, lembra que o mais importante na cozinha é o amor (depois vem a arte e a técnica) e volta a falar no célebre ovo. Para desfazer o mito. “Nunca devemos seguir receitas, excepto do ponto de vista artístico; do ponto de vista técnico devemos pensar e pôr em prática o processo adequado”, diz, para concluir enquanto engole umas garfadas tiradas de uma pequena tigela branca: “O ovo perfeito depende do gosto de cada um. Eu, nuns dias vezes, prefiro-o a 65 graus e noutros a 67.” 

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