Setúbal festeja o sal com música e 1500 jovens

O Festival de Música de Setúbal escolheu o sal como tema da sexta edição. Durante quatro dias, há concertos pela cidade, exposições à volta da substância que originou a palavra “salário” e a alegre festa da percussão a passear pela avenida. Se não podemos abusar do sal, abusemos da música

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Todos os anos, há um desfile de percussão com a participação de centenas de crianças e jovens do concelho Foto cedida pelo Festival de Música de Setúbal

Começou nesta quinta-feira mais uma edição do Festival de Música de Setúbal. Um formato original de organização que mobiliza escolas, associações e entidades do concelho, que se misturam com músicos nacionais e internacionais já consagrados e criam peças em conjunto. Antes da apresentação ao público, há um trabalho continuado, durante cinco a seis meses, de preparação e cooperação, em que todos são convidados a participar. Podem não ser estudantes de música, podem ter limitações físicas ou mentais, ser imigrantes ou residentes dos bairros ditos “problemáticos”. Num projecto que se quer inclusivo, há lugar para todos.

“Dez por cento das crianças de Setúbal já passaram pelos meus batuques”, diz divertido Fernando Molina, o coordenador do projecto de percussão que todos os anos organiza o desfile de centenas de crianças pela Avenida Luísa Todi, momento que acabou por se tornar “a abertura oficial” do festival (sexta-feira, 10h30, Auditório José Afonso), mesmo que o programa se inicie na véspera.

“Juntamos jovens com as mais diferentes origens e integramo-los no meio de artistas reconhecidos. Queremos que vivenciem a música e sintam que fizeram parte de uma coisa grande. É o que este festival tem de peculiar e gostava que vingasse por isso”, prossegue um dos fundadores dos Tocá Rufar, que espera que o festival 2016 seja o “primeiro de uma segunda mão-cheia”, já que no ano passado se assinalaram os cinco anos, “a primeira mão-cheia”.

O director artístico, Ian Ritchie, que já foi programador do Festival de Londres, recordou durante a conferência de imprensa (simbolicamente realizada na Doca das Fontainhas num recuperado galeão do sal, Riquitum) que tudo tinha começado “com o projecto de percussão, um exemplo do trabalho que é feito num modelo de pirâmide, cuja base é mais abrangente e que chega a escolas e a milhares de crianças por ano”. Fazendo as contas, são 1500 jovens a multiplicar por seis anos. Resultado: 9 mil.

Entre esses milhares de jovens, alguns terão decidido “enveredar seriamente pela música”. Fernando Molina conta algumas histórias, com orgulho feliz, mas sem vaidade: “Há um rapaz que agora estou constantemente a convidar e que faz parte dos Gaiteiros de Lisboa. A outro, sugeri que fosse a um casting dos Maiumana e convidaram-no de imediato para ir para Madrid durante três meses. Acabou por integrar o grupo e fez uma digressão mundial com eles durante dois ou três anos. Há uma rapariga que estudou percussão, foi para a Alemanha e neste momento toca numa orquestra em Berlim.”

Também fica contente quando se cruza com miúdos de 12/13 anos e lhe dizem: “Stôr, stôr, eu pedi aos meus pais uma bateria pelo Natal.” Responde-lhes a brincar: “Ainda bem. Bem feita para eles!”

“Eu fiz parte disto”

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Desfile na Avenida Luísa Todi, na edição de 2015 DR

O que rege a prática deste músico, que tocou desde cedo com artistas como Fausto, Janita Salomé e vários grupos de música tradicional portuguesa, é: “Não desafio ninguém para fazer algo que eu não fizesse e que não me desse gozo.” E conta um pouco do seu procedimento com as crianças: “Ponho-me ao nível delas. Estou de cócoras à altura dos seus olhos, explico-lhes o que quero e tento fasciná-las. Depois, digo-lhes: vamos tentar fazer qualquer coisa especial todos juntos. De hoje para amanhã, vocês vão pensar ‘eu fiz parte disto’. Nessa altura, ou vão estar orgulhosos ou vão lembrar-se de que foram uns ‘totós’, porque não aproveitaram. Depende só de vocês.”

Ian Ritchie também reforça a originalidade do festival por “envolver toda a comunidade e muitos agentes locais” e por serem os miúdos “a criar e a apresentar as suas próprias canções, sob a coordenação de Carlos Barreto Xavier”. Este ano, o desafio é ainda maior, “acrescentou-se a componente cénica e teatral, com o apoio do actor Fernando Casaca”.

Nunca há “cultura a mais”

A presidente da Câmara de Setúbal, Maria das Dores Meira, saudou as entidades que anualmente se envolvem no festival, agradecendo em particular “o generoso apoio da The Hellen Hamlyn Trust” e lembrando que a sua responsável, Lady Hellen Hamelyn, é “uma grande amiga de Setúbal”. (O PÚBLICO tentou falar com a responsável pela fundação, mas não foi possível.)

Maria das Dores Meira considera o Festival de Música de Setúbal “uma importante peça na estratégia municipal para promover a cultura e a música” na cidade, “promovendo forte cooperação entre escolas e entidades ligadas ao ensino e divulgação da música, criando peças únicas e inovadoras, rompendo com a tradicional forma de realizar festivais de música”. A presidente frisou que “o investimento em cultura tem sempre retorno garantido e que isso é universalmente reconhecido”, defendendo que nunca há “cultura a mais”.

Projectos inclusivos     

No nível seguinte da pirâmide do festival, prossegue o director artístico, com a ajuda da produtora Narcisa Costa, está “o Ensemble Juvenil de Setúbal, projecto musical e socialmente inclusivo, que convida este ano um trompetista inglês, Clarence Adoo, que ficou tetraplégico num acidente rodoviário há 20 anos, no auge da sua carreira”. Recorrendo ao apoio de tecnologias especialmente desenvolvidas para ele, volta a tocar. O seu novo instrumento, HiNote, será ouvido pela primeira vez em público no concerto Amor como Sal (sábado, 18h, Fórum Municipal Luísa Todi). “Um exemplo importantíssimo de que a música pode ser feita por todos.”

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O tema do ano passado foi o clima DR

No topo da pirâmide, “estão as estrelas”. Mas não as inalcançáveis no firmamento, explica: “São estrelas que vêm a Setúbal, partilham os seus saberes com os grupos locais e elas próprias se deixam inspirar pela cidade e pelos jovens com quem desenvolvem estes prolongados projectos musicais.”

Algumas estrelas: violoncelista Irene Lima, saxofonista Pedro Corte-Real (Prémio Jovens Músicos 2015), maestro Pearce de Azevedo (Salinas); violoncelista Filipe Quaresma (O Sal da Terra, sábado, 21h, Igreja do Convento de Jesus, com Coro de Câmara da Escola Superior de Lisboa e Coro do Conservatório de Setúbal); pianista Marcelo Bratke e videasta Mariannita Luzzati (Alma Brasileira, Fórum Municipal Luísa Todi, 21h30, com Coral Infantil de Setúbal e quatro percussionistas); trombonista John Kenny e trompetistas Torbjorn Hutmark e Clarence Adoo (A Rota do Sal, domingo, 18h, Claustros do Convento de Jesus, com HeadSpace Ensemble, Grupo de Metais da Escola Superior Música de Lisboa, Grupo de Metais do Conservatório Regional de Palmela).

Ian Ritchie lembrou ainda a importância do sal na vida e história da cidade de Setúbal, “primeiro os fenícios, depois os romanos e mais tarde os holandeses”. Os soldados romanos eram pagos “em sal e não em ouro”, daí a origem da palavra “salário”. A natureza de Setúbal; visitantes e imigrantes; comunicação; mar; clima foram os temas das edições anteriores do festival, promovido pela Organização A7M – Associação Festival de Música de Setúbal, financiado pela Câmara Municipal de Setúbal, The Helen Hamlyn Trust e Fundação Calouste Gulbenkian e com o apoio do British Council, da Antena 1 e da Antena 2.

Ligar as artes

Integradas no festival estão duas exposições na Casa da Avenida, O Perfume do Sal, de Maria João Frade e Graça Pinto Basto, e também O Sal, a que se junta Iván Prego. Ali se cruzam várias linguagens, deixando espaço para a realização de ateliers para crianças e para acolher concertos, como o Sal da Língua, que irá reunir, no sábado às 15h, três associações de imigrantes da cidade: 4 ÀS – Associação de Angolanos e Amigos de Angola (coro multicultural); Edinstvo – Associação de Imigrantes dos Países de Leste (música e canto) e Associação Cultural Busuioc dos Cidadãos Moldavos da Península de Setúbal (poesia).

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Exposição de Maria João Frade e Graça Pinto Basto Imagem cedida pela Casa da Avenida

Para Maria João Frade, proprietária da galeria, associar-se ao festival faz todo o sentido, diz ao PÚBLICO, e cita Baudelaire: “Les parfums, les couleurs et les sons se répondent...” Para explicar em seguida: “É um pouco a nossa ideia de funcionamento: ligar as coisas entre si, as diversas manifestações artísticas que fatalmente encontram ou procuram eco ou contraponto... Daí acharmos importante pensar, em parceria com o festival, o tema para cada ano e mostrar a nossa interpretação em áreas tão ‘respondentes’ à música como a pintura, o desenho, a escrita.” E todas estas formas de expressão estão presentes nas exposições, que se podem visitar até dia 29 de Maio.

A ex-professora acrescenta ainda que faz por “incluir, a propósito de cada tema, uma abordagem informativa e lúdica, mais orientada para o público mais jovem, que também participa ou assiste ao festival, assim uma espécie de serviço educativo”. Por outro lado, acredita que a participação da galeria pode contribuir para um “maior alcance do festival e, sobretudo, levar a que mais gente da terra tenha uma pequena participação: escolas e outros grupos. As actividades organizadas na Casa da Avenida também abrem outras perspectivas e divulgam o festival junto de outros visitantes”.

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Na Casa da Avenida, organizam-se ateliers e visitas vocacionadas para escolas DR

Num outro espaço da galeria, instalou-se uma mostra de trabalhos realizados por alunos da Escola Secundária D. João II, Cartazes para Um Festival. Uma exposição imaginativa e divertida que mostra talento, empenho e graça. Num dos cartazes coloridos, podia ler-se: “O festival de música mais salgado de sempre.”

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