Bruce Springsteen e este tempo que não passa

The River, o histórico álbum de 1980, será o mote para um concerto que será o grande destaque não só do primeiro dia de Rock In Rio Lisboa, mas de todo o festival.

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Bruce Springsteen na tournée The River Tour na cidade espanhola de San Sebastian no dia 17 de Maio AFP PHOTO / ANDER GILLENEA
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Concerto de Bruce Springsteen & the E Street Band no festival Rock in Rio 2012 no Parque da Bela Vista Nuno Ferreira Santos
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Na edição do Rock in Rio 2014, Bruce Springsteen apareceu como convidado especial no concerto dos Rolling Stones Miguel Manso
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Concerto em San Sebastian, Espanha, a poucos dias do concerto no Rock in Rio Lisboa 2016 AFP PHOTO / ANDER GILLENEA
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Uma semana antes, todos prosseguiam como habitualmente com a sua vidinha fora da E Street Band. Uma semana antes do anúncio oficial da digressão, todos receberam um telefonema do Boss. E não há como dizer-lhe que não. O fiel guitarrista Steve Van Zandt, obviamente, estava disponível. “Em todos os meus compromissos profissionais, tenho aquilo a que chamo 'a Cláusula Springsteen'. É inviolável”, contou Max Weinberg. O baterista invocou-a, naturalmente. O baixista Gary Tallent, o único dos fundadores da E Street Band ainda no grupo, adiou sem remorso os concertos de promoção do seu primeiro álbum a solo e o guitarrista Nils Lofgren alterou as datas da sua digressão para que nada colidisse com algo muito mais importante.

A 4 de Dezembro de 2015, o que a E Street Band soubera com uma semana de antecipação foi oficializado: aproveitando o lançamento de The Ties That Bind: The River Collection, caixa luxuosa editada para celebrar os 35 anos do histórico The River, Springsteen lançar-se-ia numa digressão americana dedicada ao álbum. Digressão que Springsteen julgou necessária para não ficar muito tempo ausente da E Street Band – irá editar este ano um álbum a solo, sem a colaboração dela nos concertos em que o promoverá. Digressão que saltou o Atlântico e que chega agora a Portugal. O concerto marcará o regresso de Bruce Springsteen ao Parque da Bela Vista, casa do Rock In Rio Lisboa, quatro anos depois de ali assinar um concerto memorável. Em 2012, apesar da presença em cartaz de uma lenda como Stevie Wonder, a actuação de Springsteen coroou-se como o ponto mais alto do festival – em 2014, regressou ao mesmo palco para uma aparição surpresa no concerto dos Rolling Stones no mesmo festival.

Em 2016 não haverá espaço para dúvidas. Não serão os Hollywood Vampires, superbanda de covers, os ícones nu-metal Korn, os saltitantes da pop Maroon 5 ou a baiana, igualmente saltitante, Ivete Sangalo, a fazer sombra a Springsteen. É virtualmente impossível que tal aconteça. Bruce Springsteen, a voz da consciência americana, o rocker com espírito de missão, o velho miúdo apaixonado, ainda e sempre, pelo poder do rock’n’roll, o homem que transformou em canção maior do que a vida as glórias, as tragédias e as importantes insignificâncias da vida de todos os dias continua aos 66 anos a ser autor de alguns dos concertos mais entusiasmantes, inspiradores (e longos) que o presente nos pode oferecer. E, de certa forma, tudo começou no álbum que deu mote a esta digressão. The River: o álbum da chegada à idade adulta, o álbum que, em 1980, pela sua coerência narrativa, pela abrangência estética e pela digressão mundial de 150 datas que se seguiu ao seu lançamento, transformou Bruce Springsteen e a E Street Band num fenómeno de massas.

Ao contrário do que aconteceu na componente americana da digressão, Bruce Springsteen não interpretará The River na íntegra em território europeu. Não o fez em Barcelona, no Camp Nou, não o fez em San Sebastian, no Estadio Anoeta, as duas datas que antecederam a chegada a Lisboa. Mas é esse disco que, naturalmente, compõe a parte mais generosa do alinhamento. Complementado com outros clássicos como Badlands, Born to run, Glory days, Born in the USA, ou com Because the night, a canção que ofereceu a Patti Smith, e Purple rain, em homenagem a Prince, a verdade é que pouco se perde do arco narrativo do álbum que, em 1979, Bruce Springsteen entregou à editora sob o título The Ties That Bind – álbum de um disco apenas –, para logo mudar de ideias e voltar a estúdio. “Quando o ouvi, e já usei esta palavra muitas vezes, não era ‘grande’ o suficiente. Não era abrangente o suficiente. Não incluía o suficiente. Cheguei a um ponto em que queria incluir tudo o que tinha feito, desde o material mais festivo aos meus estudos de personagem, e não achei que o pudesse fazer com sucesso num álbum de cada vez”, explicou Springsteen em entrevista à Backstreets, que há três décadas cobre a actividade do músico. O objectivo, quando voltou atrás com a decisão inicial, não era “fazer um álbum duplo”, acrescentou. Era fazer um álbum “melhor”.

O tempo a fugir

Numa longa reportagem que fez capa da Uncut, o jornalista Jason Anderson acompanhou várias datas da digressão americana de Springsteen, fazendo esse relato correr em paralelo com a história da gravação de The River, prolongada durante 18 meses de criatividade febril – “Passávamos juntos 24 horas por dia, certamente cinco dias por semana”, recordou o baterista Max Weinberg – antes da edição em Outubro de 1980. O álbum atingiria rapidamente vendas superiores a um milhão de exemplares nos Estados Unidos, enquanto canções como Hungry heart ou Fade away se tornavam omnipresentes nas rádios.

Na reportagem, Anderson vai encontrando vários espectadores com dezenas de concertos de Springsteen no currículo. Encontra alguns que assistiram à digressão original de The River, pessoas para quem aquelas canções eram a sua vida e, ao mesmo, uma luz de esperança nesses anos, ontem como hoje, de precariedade e grave crise económica. Com The River, a celebração rock’n’roll da juventude em marcha e as assombrações de Darkness at the Edge of Town reuniam-se num só. O rock como celebração, à Stones ou Chuck Berry, e os lamentos pelos deserdados da vida de Hank Williams ou Johnny Cash. Círculo completo: entre a festa de Sherry Darling e a ansiedade de The river, entre a palpitação pop de Hungry heart e a desolação de Point blank, entre o diálogo desencantado de Independence day e o rock’n’roll acelerado de Crush on you.

Não surpreende que tantos, nos Estados Unidos e fora dele – a febre Springsteen espalhou-se rapidamente pela Europa –, se tenham revisto naquela música e naquelas canções. Springsteen tinha 31 anos quando o álbum foi editado. No concerto da actual digressão que deu no final de Janeiro no Madison Square Garden, em Nova Iorque, voltou atrás no tempo. “O subtexto de The River era o tempo”, disse ao público que esgotou a sala. “O tempo a fugir. E assim que entras na idade adulta, o relógio começa a fazer tiquetaque e tens uma porção de tempo limitada para fazeres o teu trabalho, criar a tua família e tentar fazer qualquer coisa de bom.”

Trinta e cinco anos depois, tudo isso parece estar muito distante. Mas o mundo não mudou tanto como imaginaríamos e a música de Bruce Springsteen, com a E Street Band a seu lado – incluindo a pianista e multi-intrumentista Patti Scialfa, mulher de Springsteen, que falhou a passagem anterior pelo Rock In Rio para “ficar a cuidar das crianças” –, mudou menos ainda naquilo que tem de essencial.

Depois de os Stereophonics e de os Xutos & Pontapés tocarem no palco principal, depois de se ouvirem The Sunflowers, Keep Razors Sharp e os Black Lips no palco Vodafone, Bruce Springsteen subirá a palco para interpretar mais de 30 canções ao longo de mais de três horas. A banda será mais reduzida do que em 2012 – desta vez, por exemplo, não haverá mais sopros do que o saxofone de Jake Clemons, sobrinho do histórico saxofonista Clarence Clemons – e os relatos da digressão dão conta de concertos praticamente sem pausas, sem grandes explicações, sem comentários à situação política, como aconteceu anteriormente.

Este The River em versão ainda maior do que o original, ou seja, complementado com outras canções da sua discografia, parece conter todo o discurso necessário. A confirmar esta quinta-feira à noite no Parque da Bela Vista, em Lisboa, a partir das 23h45.

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