Não é um álbum típico de Bruce Springsteen, mas é tipicamente Springsteen

High Hopes, sucessor de Wrecking Ball, álbum de 2012, foi editado segunda-feira.

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High Hopes, o novo álbum de Bruce Springsteen reúne versões e canções trabalhadas em estúdio ou em concerto, mas não editadas oficialmente DR

“Há aquele velho ditado que diz ‘a luz do comboio que se aproxima torna a mente mais focada’”, riu-se Bruce Springsteen numa entrevista recente à Rolling Stone. Perguntavam-lhe pelo ritmo das edições desde que, em 2002, se juntou à E Street Band para gravar The Rising. Sete anos separaram esse disco do anterior, The Ghost of Tom Joad. Desde The Rising, porém, editou seis álbuns. O último saiu esta segunda-feira. Intitula-se High Hopes e não é um álbum convencional de Bruce Springsteen – é a primeira vez que lança um disco em que reúne versões e canções deixadas inacabadas em estúdio ou canções interpretadas ao vivo mas nunca gravadas.

O título do álbum, que é também o título do primeiro single, mostra-nos, porém, que High Hopes é obra do homem que conhecemos há muito: o músico que cartografou o espírito do americano comum, o cantor que ergue a voz contra os desmandos de quem tem demasiado poder nas mãos e uma relação complicada com a moral.

Springsteen tinha então citado o ditado da luz a aproximar-se e tinha-se rido depois de o citar. O entrevistador insistirá: “Mas vê um comboio a vir na sua direcção?” Ao que Springsteen responde: “Você não vê? Que idade tem?” Trinta e dois anos, responde o jornalista. E Springsteen ri-se mais um pouco. “Ah. Ainda não o vês. Mas ele está a aproximar-se.” O Boss tem 64 anos. E não sabemos se a luz que se aproxima começa a ser preocupante. Certo é que o mundo que o rodeia e a passagem dos anos tem estimulado nele uma urgência no gesto criativo pouco comum nos veteranos da sua geração. O seu último álbum, o celebrado Wrecking Ball, foi editado em 2012 – era um álbum de denúncia da ganância corporativa que levou à crise financeira global; um álbum de retratos de vidas caídas em desespero e um álbum que procurava a esperança indispensável para que um futuro, outro futuro, possa ser ambicionado.

High Hopes, o álbum que acaba de editar, arranca com a canção título. É uma canção poderosa, confluência de metais soul, rock’n’roll em tangente à música latina e coro a erguer-se para acentuar a interpretação de Springsteen: “Give me help, give me strength / give the soul a night of fearless sleep / Give me love, give me peace / don’t you know these days you pay for everything / Got high hopes.”

High Hopes não é uma canção de Bruce Springsteen. Foi composta nos anos 1990 por uma banda obscura de Los Angeles, The Havalinas, e incluída em 1996 em Blood Brothers, DVD que acompanhava a reunião em estúdio da E Street Band. Foi agora regravada por sugestão de Tom Morello, guitarrista dos Rage Against The Machine que nos últimos anos se foi tornando próximo de Springsteen. Quando o ano passado Steve van Zandt, o guitarrista histórico da E Street Band, se viu impossibilitado de acompanhar o grupo numa digressão australiana (Van Zandt, também actor, iria trabalhar na série Lilyhammer), Springsteen convidou Morello a juntar-se-lhes.

High Hopes acaba por ser, de certa forma, consequência da energia que o novo guitarrista trouxe à banda. “Tom e a sua guitarra tornaram-se a minha musa, conduzindo este projecto a um outro nível. Obrigado pela inspiração, Tom”, escreve Springsteen no texto de apresentação de um álbum em que o ex-Rage Against The Machine e Audioslave surge em oito das suas 12 canções – ouvimos igualmente no álbum dois históricos da E Street Band, o saxofonista Clarence Clemons e o teclista Danny Federici, que morreram em 2011 e 2008, respectivamente.

Ao contrário do habitual em Springsteen, High Hopes não tem uma unidade narrativa evidente. O que junta todas estas canções é precisamente a sua natureza: o facto de ser uma colecção de material que, por razões diversas, nunca havia figurado em álbuns oficiais do cantor de Glory days. “No final de uma digressão, ou quando estou em casa, entro no estúdio e estou rodeado de pinturas inacabadas”, afirmou na supracitada entrevista à Rolling Stone. Rodeado de toda aquela música que nunca concluiu, procura "aquilo que [lhe] diz algo”. Normalmente, esse é o rastilho necessário para que nasça um conceito para um novo álbum. Neste caso, foi o próprio material inacabado que se transformou no conceito.

Nasceu um disco onde, além da versão de High hopes, encontramos uma de Just like fire would, dos Saints, nome reconhecido do punk australiano, e, como despedida, uma de Dream baby dream, dos Suicide, heróis electro-punk da Nova Iorque de final da década de 1970 – e Springsteen transforma-a em gospel para conforto comunal.

High Hopes não se tornará um clássico da discografia de Bruce Springsteen, nem esse parece ser o objectivo. Foi um trabalho nascido de uma sensação de urgência, um trilho que se abriu perante o seu autor e que ele decidiu seguir com entusiasmo. Ouvimos uma versão eléctrica, em modo rock bombástico de The ghost of Tom Joad, ouvimo-lo a flirtar com a música tradicional britânica, como já ouvíamos em Wrecking Ball (e juntam-se gaitas-de-fole a This is your sword) ou a recuperar a sua canção-denúncia da violência de Estado, American skin (41 shots), relato do assassinato pela polícia americana do imigrante guineense Amadou Diallo, em 1999, e que ecoa agora o caso de Trayvon Martin, tomado por assaltante e baleado pelo simples facto de ser negro e envergar um capuz.

Não, High Hopes não é um álbum típico de Bruce Springsteen. Mas aquilo que nele ouvimos é tipicamente Springsteen.


 
 
 
 
 

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