O governo de gestão e o negócio da TAP

É possível pensar que a precipitada conclusão do negócio da TAP, utilizado como arremesso político, teve por fim criar um embaraço ao novo governo.

Estipula a Constituição que “após a demissão, o governo limitar-se-á à prática dos actos estritamente necessários para assegurar a gestão de negócios públicos”. Como a privatização da TAP foi concluída por um governo de gestão, perante tal circunstancialismo, uns dizem que esse Governo não tinha legitimidade, nem competência para tal, enquanto outros alegam estarmos perante um negócio para o qual o Governo tinha os necessários poderes.

O governo é um órgão autónomo de soberania com competência específica, ou seja, com competência política, legislativa e administrativa (cf. arts. 197-199 da CRP). Para o caso concreto, interessa-nos determinar quais das três competências é que um governo de gestão pode praticar. Considerando uma delimitação “negativa” das três funções, o governo de gestão não pode praticar actos legislativos, nem as designadas funções de actividade política ou de governo, a não ser em casos em que esses actos sejam absolutamente necessários e inadiáveis. E quanto ao exercício de funções administrativas?

Nem sempre é fácil distinguir “funções de governo” e “funções administrativas”. No entanto, a doutrina considera funções de governo “as exercidas pelos órgãos superiores do executivo e funções administrativas as desempenhadas pelos órgãos inferiores”. Esclareça-se, porém, que um acto administrativo pode transformar-se funcionalmente num ato de governo, assim com um ato de governo pode ser funcionalmente valorado como tendo um simples significado administrativo.

Nem o diploma constitucional, nem a lei ordinária definem, concretamente, o conceito de “gestão de negócios”, nem o que seja “estritamente necessário”. Daí que caiba à doutrina e à jurisprudência a tarefa de definir esses conceitos, em atenção à finalidade que o governo de gestão se propõe nas suas funções, com capacidade substancialmente diminuída. Assim, o conceito de “estrita necessidade” pressupõe, por um lado, uma importância significativa dos interesses em causa, de tal modo que a sua omissão afectaria, de forma relevante, a gestão dos negócios públicos. Por outro lado, importa que o acto seja inadiável, isto é, impossibilitado de, sem grave prejuízo, deixar a resolução do assunto para o novo governo.

Do exposto, é possível concluir que, embora a norma constitucional não estabeleça nenhum limite quanto à natureza dos actos a praticar, podem ser praticados actos de qualquer tipo, ponto é que qualquer que seja a sua natureza, eles sejam estritamente necessários. 

Como se vê, o governo nestas circunstâncias tem funções de gestão muito limitadas, com escassos poderes de administração diária e corrente, salvo os casos, como se disse, absolutamente excepcionais e inadiáveis.

Ora, se o Governo de Gestão só pode praticar os actos que sejam estritamente indispensáveis para assegurar os negócios públicos, não pode participar, na outorga de contratos, para os quais não tem legitimidade constitucional, quando esses contratos ultrapassam o simples carácter administrativo, para constituir um acto de estratégia política, como acontece com a TAP. Ao encerrar a privatização da TAP, o governo de gestão não podia ignorar que com esse ato iria limitar, significativamente, os poderes de decisão política do futuro (actual) governo, uma vez que este já tinha anunciado que iria manter o Estado na maioria do capital da transportadora, fazendo dela uma bandeira do Estado português. Deste modo, o negócio da TAP, subjacente a um mero acto administrativo, constitui um verdadeiro acto político para o qual o governo de gestão não tinha competência, salvo se os seus titulares demonstrarem aos portugueses duas causas justificativas:

1-Que a importância significativa dos interesses em causa eram de tal modo que a sua omissão afectaria, de forma irremediável, a gestão dos negócios públicos.

2-Que a conclusão do negócio era inadiável, ou seja, que existia a impossibilidade de, sem grave prejuízo, deixar a resolução do assunto para o novo governo.

Fora destes casos, é possível pensar que a precipitada conclusão do negócio da TAP, utilizado como arremesso político, teve por fim criar um embaraço ao novo governo que tomaria posse decorridos alguns dias.

Juiz desembargador jubilado

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