Próximo da pele

Todos os Dias São Bons para Roubar conta o regresso de um nigeriano a Lagos depois de 15 anos de ausência. Ficção, memória, viagem, um livro zangado que foi o ponto de partida para uma conversa com Teju Cole.

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Filho de imigrantes, nasceu em Nova Iorque há 40 anos mas diz-se nigeriano e transporta essa dupla condição para o que faz, seja enquanto escritor ou como um activista contra a exclusão: racial, social, económica cultura

Escuta-se Glenn Gould e isso não é detalhe que se ignore num início de conversa com Teju Cole. Sentado junto à grande vidraça de um café que dá para a Lafayette Street, no SoHo nova-iorquino, o escritor nota o som. "Não podia ser melhor", refere. Quem leu A Cidade Aberta sabe que a música — como os lugares, a política ou a arte — é central na literatura que Cole escreve, testando formas e incluindo tudo o que seja capaz de compor uma unidade que lhe pareça coerente.

Em todas as histórias que contou antes e depois, romance ou conto, as suas personagens lêem livros, vêem filmes, ouvem música e falam disso. “Essas coisas fazem parte da textura da vida”, diz, enquanto os dedos acompanham no tampo da mesa a melodia que enche a sala naquela manhã de Outono. Não há como não passar do cenário real para a ficção. onde é véspera de Natal em Allen Avenue, na capital nigeriana. Um homem entra numa loja que anuncia discos de jazz. “O interior da loja, coberta de prateleiras de vidro e espelhos, é uma espécie de versão em miniatura do cenário pra o combate final em O Dragão Ataca, de Bruce Lee. As prateleiras de vidro têm uma selecção musical decente. Há os artistas do smoth jazz com as suas propostas enjoativas, mas também discos dos grandes gigantes: Miles Davis, Thelonious Monk, Sonny Rollins e muitos outros . (…) Estou numa loja de discos de jazz, mas os discos não estão à venda. A não ser que pague vinte e cinco dólares por cada um, uma quantia absurda.” É uma das histórias que se conta em Todos os Dias São Bons para Roubar, uma sucessão de episódios que narram o quotidiano de extorsão que marca a sociedade nigeriana, o tema do primeiro livro de Teju Cole.   

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Martin U. K. Lengemann

Um livro político
Quando em 2011 publicou Open City — que sairia em Portugal em 2013 com o título A Cidade Aberta (Quetzal) —, o romance que o projectou como uma das vozes mais estimulantes da literatura feita na América, Cole apareceu como um autor de deambulação de sentidos. Um homem que caminha pela cidade e absorve tudo o que ela lhe dá ao mesmo tempo que projecta nessa deambulação a sua memória e a sua essência. Se há realismo no que Teju Cole ali escreve está na tentativa de aproximar o texto da experiência subjectiva, de situar a pulsão de vida num território reconhecível. Talvez por isso o que faz se aproxime também da viagem. 

Teju Cole está agora em Nova Iorque e isso, tal como a música que toca no café, não é mesmo nada indiferente para este princípio de conversa. São onze da manhã. Cole não é um dos escritores que aponta as madrugadas como o seu tempo mais criativo. Boceja, pede desculpa. “Não sou uma pessoa de manhãs”. Continua, como se tivesse todo o tempo.

Filho de imigrantes, nasceu em Nova Iorque há 40 anos mas diz-se nigeriano e transporta essa dupla condição para o que faz, seja enquanto escritor ou como um activista contra a exclusão: racial, social, económica cultural. É o seu lado político, inseparável, para ele, do criativo. Foi pela literatura que conquistou essa dimensão mais pública. A sua opinião conta. Grande parte dos textos que publica na New Yorker pertencem ao escritor que nos últimos cinco anos ganhou a autoridade do que se chama “intelectual público”. São ensaios sobretudo acerca de política e de fotografia, a outra arte que Cole pratica. A Cidade Aberta abriu portas para isso. Já lá iremos. Mas não é correcto afirmar que em Teju Cole a escrita política veio depois da literária. Elas sempre conviveram no que Cole faz e isso está presente no tal primeiro livro que escreveu, Todos os Dias São Bons para Roubar, sobre um psicólogo imigrante nos EUA que regressa a Lagos, a capital da Nigéria, 15 anos depois de ter saído. O resultado é uma escrita de confronto com a identidade, de zanga e de identificação com um lugar. Publicado há nove anos, o livro acaba de ter edição portuguesa. Por cá, como nos outros países onde está a ser editado, surge depois de A Cidade Aberta, e por isso mesmo há expectativa alta. “Este é um livro político, irado. Traz notícias de algum lugar. É um livro sobre a Nigéria escrito por um nigeriano”, conclui.

E é sobre o estrangulamento. De pertencer e não pertencer a um sítio. “Regressei como um estrangeiro”, diz o protagonista, à chegada, princípio de história feita de texto e imagem, fotografias a preto e branco, também de Teju Cole, nas ruas de Lagos. Não é um romance na acepção clássica do que se considera romance, com enredo e personagens bem definidas. Há um misto de ficção, jornalismo, escrita de viagem, denúncia política, uma conjugação de discursos mediados por uma personagem, um eu que não é Teju Cole nem Julius, o protagonista de Open City, apesar de ter um pouco dos dois. “Sim, está próximo de Julius, um homem só, solteiro, que perdeu o pai, de cabeça quente. Ele vive num contexto muito real, poderia ser também eu, mas a família, as conversas, as interacções, os amigos que encontra, tudo isso são ficções.” 

São confusões de ter uma primeira pessoa próxima da própria identidade e de fazer isso num registo de memória. “Uma narrativa na primeira pessoa é também escrita como uma memória”, refere. O “eu” soa a “eu mesmo”, a um “esta é a minha história”, mas “não é”. Não importa. A explicação sobre o livro já não faz parte do livro e a confusão que possa ser criada a partir dele é uma coisa que até agrada ao autor numa perspectiva criativa. “Quis mergulhar no ambiente de Lagos e fazer passar uma experiência crível, uma experiência próxima da pele. Nisso, o livro é experimental”, continua o escritor numa comparação com o livro que se seguiu, A Cidade Aberta. “É muito mais claro que é um romance mesmo não sendo também um romance convencional; uma deriva muito interior por territórios muito precisos, Nova Iorque, mas também Bruxelas.” A intenção, num como no outro, foi encontrar a forma e essa busca é uma permanência em Teju Cole. Nos posts que faz no Twitter e onde fala de literatura, de política, de arte, de fotografia — os universos onde se move enquanto autor —, ou no Instagram, onde está a ensaiar uma história contada através de micro-filmes (ver _tejucole), ou ainda nos ensaios que assina para a New Yorker. “Quero contar histórias, mas não quero apenas sentar-me e escrever mais um conto. Isso não me interessa muito”, confessa, admitindo afinal que, seja onde for, é quase sempre sobre contar histórias. Contudo, o como contar essas histórias é o desafio, ou, como diz, “saber como trazer o observador para um sítio onde alguma coisa acontece”. 

Pode acontecer na tela, numa página de papel, no mundo virtual onde começou a contar uma história no Instagram. Filma uma pessoa enquanto conversa com ela. E é sempre a mesma pessoa. Há uma mulher sentada junto a uma janela. Olha para a rua. Vê-se o seu perfil. Uma voz masculina pergunta-lhe se está bem. Ela vira-se de frente. Responde que sim. No post seguinte, a mesma mulher na mesma janela e a voz masculina pede-lhe para contar a sua versão, quem é Clara. Outro post. A câmara está agora apontada para o mesmo cenário. A voz masculina pede-lhe para começar do princípio, onde é que a rapariga de que falam nasceu. Ela responde-lhe “sabes o princípio disto”, mas a voz diz-lhe que quer ouvir dela própria. “Ela nasceu em Portugal”, em Lisboa. A história fica suspensa aqui, foi o último post antes da conversa com o escritor. “É sempre a mesma personagem. Chama-se Ana e Ana é uma personagem de ficção interpretada por diferentes mulheres com as quais Teju Cole vai falando. Não há fim para esta história, pelo menos para já.

Comprometido com o mundo
Haverá territórios melhores e piores para se contar uma história? Escrever em Lagos, “uma cidade de Xerazades”, é melhor do que escrever em Nova Iorque? Lê-se Todos os Dias São Bons para Roubar e o protagonista acha que sim: “Os pormenores que me atraem tanto em Gabriel García Márquez estão todos aqui, à espera do anjo que os escreva.” E pouco depois: “Tivesse John Updike nascido africano e teria recebido o Prémio Nobel há mais de vinte anos. Tenho a certeza de que a matéria à sua disposição o constrangiu. Shillington, na Pensilvânia, não podia estar à altura do seu talento fora do comum.” Teju Cole explica: “Não acredito nisso, mas é um pensamento interessante. Não o escrevi como um enunciado sobre o lugar de onde as histórias vêm. Quando escrevo isso, estou mais interessado no realismo, que tipo de coisas uma personagem destas pode dizer num livro. Neste livro esta personagem pode dizer que a Nigéria está cheia de histórias, mas a verdade é que há histórias em todo o lado.”

Todos os Dias São Bons para Roubar começou a ser escrito em 2006, o mesmo ano em que Cole arrancou com A Cidade Aberta. “Há uma grande proximidade entre ambos. Se eu tivesse escrito um livro sobre Lagos, hoje, seria muito semelhante. Já soa à minha escrita. Naquela altura, já era o escritor que sou. Foi uma experiência pela qual tive de passar para disciplinar a minha linguagem e o meu pensamento e apresentar algo coerente a quem lê. Agora sei como se faz.” 

Foi o livro que o ensinou a escrever A Cidade Aberta, a chegar a Julius, por exemplo. O protagonista de Todos os Dias são Bons para Roubar está numa espécie de meio caminho, libertando-se da personalidade do autor e encaminhando-se em direcção a Julius. Mas não tem nome. É menos contemplativo do que Julius, mais visceral, mais zangado. “Estarei pronto para toda a raiva que a Nigéria pode criar em mim? Para os debates que enquanto ‘humanista’ eu seria obrigado a ter numa terra como esta?” E, como se vê pela citação retirada do livro, está mais perto da ideia de expressar directamente uma opinião política. “Isso ajudou-me a não dar tanto ênfase à biografia pessoal na narrativa, mas aos pensamentos e os sentimentos que são experienciados”, conta e conclui: “sim, este livro ensinou-me a escrever A Cidade Aberta e A Cidade Aberta ensinou-me a escrever todos os ensaios que fiz até hoje, como pensar no mundo e pôr isso em palavras. Estes livros colocam-me no mundo.”

E tem contágios explícitos. Tomas Transtromer, W. H. Auden, Michael Ondaatje, Gabriel García Marquez. Diz que permanecem como talismãs. “Os grandes escritores são modos de chegar mais perto do nosso lugar no mundo. Em muitos casos são um pouco um substituto para a religião. São sacerdotes invisíveis, medeiam entre nós e coisas que não conseguimos ver.” E há Chinua Achebe, o romancista e poeta nigeriano que influenciou as novas gerações de escritores africanos, e sobretudo nigerianos, onde se destacam Teju Cole e Chimamanda Ngozi Adichie. Como quase todos os que o Ocidente conhece, vivem nos Estados Unidos. Onde estão, então, os escritores nigerianos actuais que vivem na Nigéria? A pergunta é feita pelo protagonista de Todos os Dias São Bons para Roubar durante a visita a uma livraria em Lagos. “Já há mais escritores a viver na Nigéria, mas como em quase tudo é a economia a determinar o lugar onde estão”, responde Teju Cole. “Onde estão a jogar os futebolistas do país com maior tradição em futebol do mundo? Estão na Europa, onde há dinheiro. Os escritores estão onde estão as possibilidades de chegar a uma audiência. O inglês é a nossa língua e é uma língua internacional e pode-se viver dela na América e no espaço britânico.” 

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Literatura e fotografia têm a mesma génese no trabalho de Teju Cole. Há um lugar e uma câmara apontada a ele. Quase sempre a cidade, com os seus fantasmas do passado a revelarem-se no presente. Lagos ou Nova Iorque.

O facto é que a Nigéria não está a ser escrita neste tempo por quem vive nela. Está a ser escrita sobretudo de fora. Teju Cole desdramatiza. Por vezes é preciso sair. Há a Internet a ajudar o contacto, os que ficam e os que vão. “Posso escrever um artigo sobre a política da Nigéria para um jornal nigeriano mesmo não vivendo lá. Vou à Nigéria uma ou duas vezes por ano, mas a Nigéria não é o meu assunto principal.” E qual é então? “Estou comprometido com a Nigéria, mas estou sobretudo comprometido com o mundo. A minha principal função enquanto crítico na New York Times Magazine não é escrever sobre a Nigéria, mas sobre fotografia. É esse o tema e é geral, não se fecha numa geografia.” 

Mas parte invariavelmente de uma geografia. Seja em jornal, em livro em suporte virtual, a fotografia ou a escrita que Teju Cole faz será sempre sobre lugares ou a partir de lugares. “É no lugar que a minha imaginação vive”, afirma. Imaginar um lugar. A partir de uma distância ou estando lá. “Mesmo estando no sítio a imaginação entra, filtra”, continua. Para ele, ser artista a partir de um lugar é ter uma base onde sustentar o livro ou a imagem. É sobre querer estar numa geografia, senti-la. “Para mim, estar no lugar é o modo mais produtivo de entender um problema complexo. Enquanto autor não tenho que resolver o problema mas entendê-lo melhor.” 

Nos últimos quatro anos esteve em trinta países e nesses países em muitos lugares. A atenção fixa-se em pontos. No que tem sido mais ignorado, no que não tem sido bem olhado. Pretende ser um olhar presente, mas é quase sempre passado no sentido em que William Faulkner o definiu e que o protagonista deste Todos os Dias são Bons para Roubar recorda: “O passado nunca está morto. Nem sequer chega a ser passado.”  Teju precisa: “No sentido em que se olha para o outro lado da rua e os fantasmas estão lá.” Aponta para o passeio: “Ali alguém viu pela primeira vez alguém que seria muito importante na sua vida. Alguém esteve aqui sentado e o telefone tocou e houve uma notícia que alterou tudo. É isso que procuro em todo o lado.” No Brasil, na Guatemala, em Jerusalém ou na Europa durante o Verão que terminou há pouco. Estava na Europa quando se começou a falar numa crise europeia de refugiados. “A crise não é para a Europa, mas para os refugiados, para os migrantes. Há nos discursos europeus sobre o assunto uma auto-dramatização e também um problema de linguagem”, refere sobre o que acusa de falta de noção do que é o “nós” a que todos se referem. “A linguagem que inclui e que exclui não é nunca inocente porque há o tal passado a que não se escapa. A Europa tem esse passado. Todos temos. Andamos à procura de uma inocência perdida. A sociedade não é inocente, e sabendo disso é preciso interrogar a base ou aquilo em que a conversa se funda.” 

O paradoxo acerca do lugar, de cada lugar da terra formado por esse presente com fantasmas, é que quando se está num lugar e se escreve sobre ele nunca é preciso dizer tudo. Há poética nisso, mas há também muita política e agora é esse o mote que quer sublinhar. “O que conta é a experiência de experimentar esse paradoxo”, nota. E o discurso volta ao início, à literatura, à personagem que chega a Lagos como à personagem que não sair de Nova Iorque no livro seguinte. Não são factos o que importa, é o contexto. “Sim, os lugares são o meu grande assunto e, por isso, graças pelos aviões.”

É sobre a tal linguagem que inclui e exclui que Teju Cole constrói o seu discurso mais político alicerçado no lugar. É aí que está a sua voz pública. “Sim, há uma espécie de megafone que me deram. Mesmo se puser um pequeno comentário no facebook ele é projectado até longe. Isso pode dar-me prestígio ou pôr-me em trabalhos”. Aprendeu a não ser tão imediato na reacção ao que o apaixona ou o faz abespinhar. “Mais uma vez procuro as as palavras certas, a ênfase. Mas também por causa do megafone tenho um redobrado sentido da responsabilidade, não apenas para evitar problemas, mas para dizer qualquer coisa de forma activa. Nesse processo há um perigo: o de me apaixonar pela minha voz.” Procura o equilíbrio e diz seguir e tradição europeia, africana, latino-americana. “Os escritores americanos tendem a não se manifestar sobre política contemporânea. O papel de denúncia parece estar entregue aos escritores americanos de segunda geração; os que escrevem na América mas pertencem também a outras culturas. Isso acontece cada vez menos no romance do chamado 'autor branco'. Quem deles é que fala da polícia americana na Palestina, por exemplo?”, interroga-se. “Só quem tem um pé fora da América”, refere. Entre eles, Junot Diaz, Edwige Danticat, Roxane Gay. “Enquanto a América continuar a envolver-se com o destino de outros povos, a ter muita importância na política internacional, os cidadãos americanos responsáveis têm de pensar sobre isso. Coisas como se um cidadão americano é alvejado fora da América isso é considerado um atentado terrorista e se a América bombardeia um casamento no Iraque isso é apontado como um  engano. As vidas não podem continuar a ser tratadas de forma diferenciada. Mas são, e são logo dentro da própria América.” 

No seu discurso público, tem sido activo na defesa dos direitos de minorias, na denúncia de violações de direitos humanos, manifestando-se activamente contra a alegada arbitrariedade com que as autoridades e a justiça americanas tratam a comunidade negra na América; um crítico do modo como a América gere a sua relação com Israel. “Pensar sobre temas que implicam medo e sofrimento é uma obrigação. Muitas vezes podemos errar nas opiniões, mas é fundamental pensar honestamente, enquanto seres humanos, como é que o mundo pode ser melhor. Temos mesmo, mesmo, de perseguir essa ideia. Escrever sobre política é uma forma de crescer em público e como todos os crescimentos implica falha e dor.”

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