Centro oftalmológico no sopé do Kilimanjaro é Prémio Champalimaud

Três instituições de vários países, reunidas num megaprojecto pioneiro de luta contra a cegueira à escala do continente africano, recebem este ano o Prémio António Champalimaud de Visão.

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Os premiados deste ano Enric Vives-Rubio
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Susan Lewallen, co-fundadora do Centro de Oftalmologia Comunitária do Kilimanjaro Enric Vives-Rubio
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Edson Mwaipopo, director do Centro de Oftalmologia Comunitária do Kilimanjaro Enric Vives-Rubio
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Jack Blanks, director executivo da Fundação SEVA Enric Vives-Rubio

Tudo começou há 20 anos na imaginação de um casal de médicos norte-americanos. Cinco anos mais tarde, eles mudavam-se para a Tanzânia, em África, com dois filhos pequenos, e fundavam, na cidade de Moshi – no sopé do Kilimanjaro –, o Centro de Oftalmologia Comunitária do Kilimanjaro (KCCO).

Hoje, o KCCO já trabalha numa série de países no desenvolvimento de programas sustentáveis de prevenção e tratamento da cegueira provocada pelas cataratas, o glaucoma e outras doenças dos olhos, das crianças aos idosos. E visa um dia abranger todos os países africanos, permitindo às populações daquele continente, mesmo as mais remotas, o acesso a cuidados oftalmológicos universais de qualidade. 

Esta rede de hospitais e de pessoas (médicos, enfermeiros, gestores, especialistas de saúde pública) é um dos galardoados do Prémio António Champalimaud de Visão 2015. E juntamente com ela, partilham o prémio – de um montante de um milhão de euros, o mais importante prémio a nível mundial nesta área – duas outras organizações, igualmente dedicadas à erradicação da cegueira a nível global e que financiaram e colaboraram com o KCCO, ao longo dos anos, no âmbito do chamado Projecto Kilimanjaro: a Fundação SEVA (com sede nos EUA) e a SEVA Canadá.

“Eu adorava a medicina clínica e, de 1990 a 1994, tínhamos estado com o meu marido a trabalhar no Malawi”, disse esta quinta-feira ao PÚBLICO durante uma conversa matinal na sede da Fundação Champalimaud, em Lisboa, horas antes da cerimónia de entrega do prémio, a oftalmologista Susan Lewallen, relatando como ela e o marido Paul Courtright, especialista de saúde pública e de epidemiologia oftálmica, embarcaram nesta aventura em 2001.

Foi no Malawi que eles perceberam que o problema do acesso aos cuidados de saúde ocular em África “ia muito para além da falta de médicos: desde o material de sutura acabar a meio de uma operação ao facto que muitos doentes nem sequer sabiam que estavam a cegar, nem como aceder aos cuidados disponíveis”. E acrescenta com um sorriso: “Sabe, os cirurgiões não se preocupam habitualmente com as questões de saúde pública…”

O casal regressara do Malawi para os Estados Unidos, onde permaneceria durante sete anos, mas sem nunca deixar de pensar que um dia voltariam para lá para criar um centro de oftalmologia diferente.

A decisão de partirem teve de ser tomada mais depressa do que tinham previsto: “Eu tive problemas de saúde naquela altura, e não sabia quanto tempo iria ter para realizar o projecto”, prossegue Susan Lewallen, hoje com 61 anos. “E como os nossos filhos eram pequenos, também achámos que devíamos partir o mais depressa possível, já que essa seria a melhor educação possível para eles.”

“Fomos imaginando e falando do projecto entre 1996 e 1998. Tivemos muitos problemas para angariar os fundos necessários mas, em Setembro de 2011, já tínhamos escolhido o nosso destino: Moshi, onde sabíamos que seríamos bem-vindos, onde existia uma universidade com um programa de formação em oftalmologia – e onde havia uma escola internacional para as crianças.”

Foi então que se deram os ataques do 11 de Setembro. “Nessa altura, já tínhamos vendido a nossa casa e eu já tinha avisado os meus colegas de consultório da minha partida por tempo indefinido para África. Por isso, decidimos ir na mesma.”

Susan Lewallen recorda ainda o choque da mudança para “quase o meio de nenhures”. “Chegámos durante a estação seca. Havia uma tal camada de pó na estrada que os meus filhos caiam quando tentavam andar de bicicleta. Choravam e pediam para voltarmos aos EUA e eu pensava: ‘Meu Deus, isto foi uma loucura…’”

Mas no Natal, a família visitou uma reserva de animais e aí tudo melhorou. “Quando entramos, elefantes vieram ao nosso encontro, vimos passar umas zebras e os rapazes exclamaram: ‘Este é o nosso melhor Natal de sempre!’ Hoje, têm 25 e 23 anos; o mais velho trabalha no Peace Corp no Senegal e o outro tenciona regressar a África.”

Em 2012, o casal mudou-se para a Cidade do Cabo, na África do Sul, a partir de onde continua a gerir a investigação científica e a questões administrativas do KCCO.

Susan Lewallen refere ainda como começou “a tentar ensinar os aspectos tão importantes de saúde pública” no hospital de Moshi. “Tivemos imensa ajuda do Hospital Oftalmológico Aravind, na Índia [laureado do mesmo Prémio Champalimaud em 2007]. “Íamos lá, levávamos o pessoal de Moshi para eles fazerem formação, e conseguimos adaptar o modelo deles à realidade africana.”

Há cinco anos, o casal sentiu que era tempo de se afastarem, que a equipa local poderia fazer as coisas por si própria. “Queríamos fazer isso gradualmente, sendo que, de qualquer maneira, nunca estaríamos muito longe”, diz a médica.

Contudo, mais uma vez os eventos apressaram os seus planos quando, em 2012, a equipa dirigente do hospital de Moshi foi substituída e a nova administração decidiu ficar com o edifício que o casal tinha construído de raiz, com fundos por eles angariados. Felizmente, diz contudo Susan Lewallen, o KCCO “não era apenas um edifício; tínhamos uma equipa fabulosa, o que fez com que o impacto da perda do edifício não fosse tão grande”.

Dessa “fabulosa equipa” fazia parte, desde 2005, Edson Mwaipopo. “A minha formação era na área da economia e da educação”, disse-nos por seu lado este homem afável de 45 anos, natural da Tanzânia e hoje director do KCCO. “Nada a ver com os cuidados de saúde! Mas Susan e Paul viram que eu tinha potencial.”

Em África, mais de metade das cegueiras são provocadas pelas cataratas, sendo o glaucoma (devido a pressão intra-ocular excessiva) a segunda causa. No primeiro caso, trata-se de uma cegueira reversível por cirurgia e no segundo de uma doença que pode ser travada com cirurgia se for apanhada a tempo.

Porém, como as populações rurais são geralmente muito dispersas e pobres, o grande problema consiste em chegar até elas. E quando isso acontece, muitas vezes não têm dinheiro para pagar o transporte até ao hospital ou têm medo da operação. Acontece ainda que, apesar de saberem que estão doentes, não fazem ideia de como aceder aos cuidados de saúde.

Daí que uma grande parte do trabalho da equipa do projecto consista em estabelecer contactos directos e regulares com as populações, para educar certos grupos, como por exemplo de mulheres, e torná-los capazes de informar o resto da aldeia sobre o que podem fazer se tiverem problemas de visão. E no caso das crianças, salienta Edson Mwaipopo “temos de sensibilizar os pais para que levem imediatamente os seus filhos ao hospital se virem que têm uma mancha branca nos olhos [sinal precoce da catarata]. “Suspeitamos que, nas crianças, o aparecimento de cataratas [habitualmente associadas ao envelhecimento] tenha a ver com a nutrição”, acrescenta.

Actualmente, a rede do Projecto Kilimanjaro está (ou estará em breve) a funcionar em mais de uma dúzia de hospitais em vários países: quatro na Tanzânia, dois no Malawi, quatro em Madagáscar, três no Uganda, dois na Etiópia, um no Burundi. E em breve será a vez do Benim (país francófono) e da África lusófona, diz Edson Mwaipopo. Desde a fundação do KCCO, mais de 500 pessoas receberam formação em cuidados de saúde oftalmológica a vários níveis, da clínica à gestão passando pela enfermagem.

Talvez nada disto teria sido possível sem a colaboração, desde o início do projecto, dos outros galardoados. “Conheci a Susan e o Paul nos anos 1980, antes de vir trabalhar para a SEVA”, explicou-nos Jack Blanks, director executivo desta fundação.

A SEVA, que a partir dos anos 1970 se dedicou “a libertar o mundo da cegueira”, começou na Índia trabalhando com o Instituto Aravind e a seguir expandiu-se para o Nepal, abrangendo hoje um total de 20 países. “Somos os mais antigos dos três premiados. A SEVA nasceu há 37 anos no seio de um grupo de médicos e activistas políticos que tiveram a ideia de transformar a compaixão em acção”, diz Jack Blanks. Inicialmente fundada com o objectivo de erradicar a varíola, foi impulsionada por uma médica francesa a focar-se na cegueira. “Nicole Grasset, uma das fundadoras da SEVA e ex-directora da Organização Mundial da Saúde para a eliminação da varíola na Ásia”, explica-nos, “tinha visto milhares de crianças cegar por causa da falta de vitamina A. E achou que a SEVA podia ter imenso impacto nessa área”.

“Hoje, esta causa de cegueira praticamente desapareceu porque nós e outros grupos de activistas conseguimos que as campanhas de vacinação incluíssem comprimidos de vitamina A, que protegem as crianças durante um ano em sítios onde a sua dieta é principalmente à base de arroz, sem acesso regular a peixe nem ovos.”

Em relação ao Projecto Kilimanjaro, diz Jack Blanks, “desde a criação do KCCO que lhe temos dado apoio, ano após ano, partilhando experiências, recursos humanos e fornecendo ajuda financeira. Mas nos últimos anos, é com a SEVA Canadá que o KCCO tem trabalhado mais.”

A SEVA tem ainda outra “pena” no seu chapéu: esteve na génese da empresa Aurolab, na Índia, que é hoje o sétimo maior produtor mundial das lentes utilizadas para substituir o cristalino do olho nas operações das cataratas. “Há 25 anos, o principal obstáculo ao tratamento das cataratas era o preço das lentes”, explica Jack Blanks. Custavam centenas de dólares mas nenhuma empresa europeia ou americana estava disposta a baixar os preços.

“O que fizemos então, há 20 anos, foi transferir tecnologia para o Hospital Aravind, o que deu origem à Aurolab.” Hoje, por um punhado de dólares, esta empresa fabrica aqueles “bocadinhos de plástico” exclusivamente para os países em desenvolvimento. “E ainda assim conseguem ter lucros!”, acrescenta Jack Blanks. Mais: já tem uma dúzia de concorrentes, “o que aumenta a qualidade do produto e faz baixar os preços ainda mais”.

No que é que os premiados vão usar a sua parte do dinheiro? A resposta é unânime: para assegurar a sustentabilidade do sistema que criaram. E em particular, para formar mais pessoas. “Hoje, o maior obstáculo é a falta de recursos humanos – e isso ainda vai demorar muito tempo a resolver”, conclui Jack Blanks. “Mas quando treinamos uma pessoa durante dois anos, ela permanece no sistema durante 20 anos. O efeito bola de neve da capacitação a todos os níveis é gigantesco.”

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