Devolver a política à Europa

A Grécia mostra que, hoje, a Europa é um assunto de "política interna" de todos os países e não apenas das instituições comunitárias.

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A questão grega é duplamente política: para a Grécia e para a Europa. A dívida não é a raiz do problema grego, é a sua mais dramática manifestação.

Em textos anteriores citei ad nauseam historiadores, politólogos ou economistas gregos que explicam que a questão não está nos gregos nem na Europa mas no funcionamento das instituições. "A crise grega é, antes de mais, a crise do Estado grego e da sua legitimidade", resumiu o historiador Anastassios Anastassiadis. "O problema da Grécia é político e cultural. O sistema político é o primeiro responsável pela crise que assola a Grécia."

Esta questão torna-se de novo vital. Se houver um acordo (escrevo na sexta-feira) será o Estado grego capaz de o pôr em prática? Quem concebe uma recuperação económica sem um Estado moderno e uma máquina administrativa eficaz? É a questão de credibilidade. A crise grega não acabará hoje nem amanhã, está para durar.

Um discurso de Tsipras
A questão do Estado tem sido obscurecida tanto pelos políticos gregos como pela esquerda radical europeia, centrados na denúncia da austeridade e nos discursos de vitimização. Paralelamente, a UE e o FMI, dominados por uma visão economicista, ajudaram a iludir o problema. Fala-se naturalmente na reforma do Estado mas não é ela que domina o debate ou a negociação.

Que pensa disto o Syriza? Antes da vitória nas eleições de Janeiro, afirmava Giorgos Stathakis, actual ministro da Economia: "É preciso parar de destruir a sociedade grega e concentrarmo-nos na reforma do Estado e na luta contra a burocracia."

No discurso de quarta-feira no Parlamento Europeu, Alexis Tsipras falou num tom diferente do que usa em Atenas e disse uma coisa interessante: "Não sou daqueles políticos que dizem que os problemas da nossa pátria são culpa dos estrangeiros: durante demasiados anos os governos gregos criaram um Estado clientelista, alimentaram a corrupção e [a promiscuidade] entre política e negócios, enriquecendo uma certa camada do povo, os 10% que detêm 56% da riqueza do país. E esta enorme desigualdade, junta ao programa de austeridade, agravou a crise em vez de a corrigir."

Por que demorou Tsipras cinco meses a dizer ou a tomar consciência de que as prioridades gregas são a reforma do Estado e o combate à corrupção e ao clientelismo? O Syriza não tem responsabilidade histórica no "sistema grego". Terá começado a adaptar-se ao clientelismo, a chave tradicional da conquista e manutenção do poder na Grécia?

E a UE? Observa a economista italiana Lucrezia Reichlin: "Após quatro meses de incerteza e de erros de todas as partes, as negociações entre Atenas e a ‘troika’ (ou como lhe queiram chamar) parecem focar-se exclusivamente em aspectos orçamentais, num acordo do último minuto para evitar o pior mas que não garante a sustentabilidade a longo prazo." Manifesta sobre as prioridades: não seria melhor começar pelas reformas com menos custos sociais e acelerar a reforma do Estado?

A legitimidade da UE
Tanto o "não" do referendo grego como o discurso de Tsipras ilustraram um fenómeno que conhecemos bem: foram aplaudidos pelos populistas de extrema-direita e da esquerda radical. São correntes que têm valores diferentes e visões contraditórias da Europa mas que convergem na hostilidade à UE, em nome da soberania dos povos ou da denúncia da "tutela alemã". Fazem parte de um movimento de protesto mais largo contra os dirigentes europeus.

A Europa tem assistido a uma vaga de pulsões nacionalistas, xenófobas e até autoritárias, ao mesmo tempo que se multiplicam os sinais centrífugos — olhe-se a Grã-Bretanha — e se acentua a divergência, cultural e de interesses, entre Norte e Sul.

Observa Alain Bergounioux, historiador do socialismo francês: "A chegada ao poder da coligação Syriza revelou que a escolha europeia é fundamentalmente política — o que o debate económico faz por vezes esquecer. A União Europeia são os Estados e os povos. A Comissão tenta desempenhar um papel de representante do interesse geral. Mas no Eurogrupo são os Estados mais influentes que tomam as decisões. Pagamos o inacabamento e as querelas de legitimidade na organização política e institucional da zona euro."

Caminha-se também para um conflito de legitimidades entre a democracia representativa e a democracia referendária, em nome dos "povos" que se sentem à margem das decisões e dos compromissos de Bruxelas. À direita e à esquerda, a Frente Nacional de Marine Le Pen, o movimento de Beppe Grillo, o Podemos espanhol ou o Pegida alemão desafiam o projecto da integração europeia.

A Grécia mostra que, hoje, a Europa é um assunto de "política interna" de todos os países e não apenas das instituições comunitárias. A crise grega não envolve apenas riscos geopolíticos ou de instabilidade financeira. Arrasta um elevado risco de contágio político, como se viu nas reacções ao referendo. Se as instituições europeias estão a perder credibilidade junto dos cidadãos, só uma resposta política poderá travar a ameaça de paralisia e de desintegração.

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