A indignação não é um crime de ameaça

As figuras públicas têm de suportar palavras contundentes.

Foi indiscutivelmente sensata a actuação da Procuradoria-Geral da República e do DIAP ao não abrirem um inquérito-crime às afirmações do ex-Presidente Mário Soares num recente artigo de opinião publicado no Diário de Notícias que terminava assim: “Nesta fase final de um governo incapaz e de um Presidente da República que nunca se dignou a dizer uma palavra acerca de um ex-primeiro-ministro, com o qual durante anos dialogou, a indignação e solidariedade dos portugueses com Sócrates não podia ser maior. Como se tem visto em inúmeras visitas que, de norte a sul, lhe têm feito, com enorme carinho. Valha-nos isso. E o juiz Carlos Alexandre que se cuide...”

Esta última afirmação foi considerada por diversas pessoas, nomeadamente pelo presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses como susceptível de configurar um crime de ameaça, previsto e punido pelo Código Penal. No entanto, a Procuradoria-Geral da República estudou a questão e o DIAP soube evitar a triste figura do actual Presidente da República ao queixar-se criminalmente contra Miguel Sousa Tavares por numa entrevista o ter referido como “palhaço”. Como é evidente, podemos gostar mais ou menos daquela afirmação  e das  opiniões de Mário Soares, podemos classificá-las como absurdas ou despropositadas ou, ainda, como louváveis e corajosas e são, seguramente polémicas, mas a questão era saber se eram um crime.

O crime de ameaças exige que alguém ameace outrem “com  a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor” e que o faça de forma “adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, o que não é manifestamente o caso. Nem Mário Soares ameaçou o juiz Carlos Alexandre com qualquer mal futuro, nomeadamente a prática de qualquer crime, nem, seguramente, o juiz em causa passou a ter medo das consequências de tal afirmação .

Não se colocou sequer a questão da liberdade de expressão do ex-Presidente da República contrariamente à decisão da passada terça-feira do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH)  proferida no caso Haldimann e outros v. Switzerland que se deve considerar, igualmente, como sensata.

Os queixosos eram quatro jornalistas de uma televisão suíça e o seu crime tinha sido o de utilizarem uma câmara escondida para filmarem uma conversa com um mediador de seguros. Tinham-no feito no âmbito de um trabalho sobre as más práticas comerciais na angariação de seguros de vida e tinham publicado as imagens na televisão, mas com distorção da cara e da voz do mediador, tornando-o irreconhecível. De qualquer forma,  foram acusados criminalmente pelo crime de gravações não autorizadas e, após diversos recursos, condenados numa pena de multa.

Recorreram então ao TEDH alegando ter sido violado o seu direito à liberdade de expressão que a Suíça, como Portugal, se obrigou a respeitar ao subscrever a Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Para o TEDH , nos casos em que está em causa a reputação de uma pessoa, nomeadamente uma figura pública face à liberdade de expressão, há que atender a seis aspectos essenciais para decidir se se justifica ou não a restrição  à liberdade de expressão que foi aplicada: se a notícia contribuía para um debate de interesse público, o grau de notoriedade da pessoa envolvida e do assunto em causa, a conduta anterior dessa mesma pessoa, a forma como fora obtida a informação, a veracidade, conteúdo, forma e repercussões  da informação transmitida e a pena aplicadas pelos tribunais nacionais.

Ora, neste caso o mediador em causa não era uma figura pública, mas o documentário, embora transmitisse as suas palavras e imagens, não se debruçava sobre ele em concreto mas sim sobre a necessidade de proteger os direitos dos consumidores , questão que era de indiscutível interesse público.

E, no entender do TEDH, os jornalistas tinham feito um uso limitado da câmara escondida e embora tivessem interferido na “vida privada” do mediador, tinham tido o cuidado não só de o tornar irreconhecível como de o filmar fora do seu escritório, pelo que essa interferência na vida privada – ou no direito à imagem e à palavra, como diríamos no nosso país – não podia prevalecer face ao interesse público na obtenção  e divulgação  da informação em causa. Informação que ninguém pusera em causa ser verdadeira.

Por último, o TEDH considerou que embora a pena fosse leve – 12 dias de multa – era suficiente para desencorajar os meios de comunicação social na sua função de crítica. E assim, para bem da formação  de uma opinião pública livre e esclarecida, declarou que a Suíça violara a liberdade de expressão dos quatro jornalistas.

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