Um divertimento com jóias falsas

A zarzuela de Barbieri contou com um elenco de qualidade, mas a produção do Teatro de la Zarzuela arrisca demasiado pouco.

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O São Carlos recebe – até ao dia 29 deste mês – mais uma produção do Teatro de la Zarzuela, de Madrid. Los Diamantes de la Corona é uma zarzuela de Francisco Barbieri, compositor de mais de 60 obras do género ao longo da segunda metade do século XIX. Diversão ligeira, com números típicos, esta “zarzuela grande” tem a curiosidade de ser passada em Portugal e centrada numa inventada rainha portuguesa, Catalina. Figura que renova, em golpes de teatro, o ideal de um “soberano bondoso”, pois ela é amiga do povo, a tal ponto que aceita falsificar as suas jóias para ajudar a vencer a crise.

A zarzuela começou um pouco trôpega, com a orquestra amolecida (e o coro masculino inicial – “Volta ao trabalho, basta de folgar” sem a força desejável), mas as coisas foram melhorando e o acerto com os cantores apurou-se no segundo e terceiro actos. Um equilibrado elenco de bons cantores (mas nenhum sobressaindo) garantiu um bom divertimento até ao fim. Posso garantir-vos que acaba tudo em bem... e pelo caminho a rainha Catalina dá uma lição, quando sugere que as aparências importam menos que a verdade mais funda: “É verdade essa ilusão, meu carinho, minha paixão. Só é falsa minha coroa.” Rainha aventureira, que lidera um grupo de bandidos para forjar diamantes falsos.

A encenação tem algumas limitações, sobretudo nas gestualidades dos cantores e nas movimentações do coro, pouco inventivas, nunca saindo de uma concepção tradicional da ópera. Apesar disso, capta no sentido certo um artificialismo cómico da nobreza e dos meios políticos, na figura do arrogante ministro de peruca sempre em busca de favores e de poder. O tenor Ricardo Muñiz podia contudo ter ido mais longe vocalmente na construção caricatural do seu ministro Campomayor. A encenação consegue ainda assim marcar bem os cortes e interrupções (com luz e som, ou travando os gestos) que acompanham o abundante uso de apartes das personagens.

A zarzuela de Barbieri tem momentos realmente cómicos, como o dueto “desamoroso” entre Diana e o Marquês de Sandoval (bem cantado pela meio-soprano Cristina Faus e pelo tenor Carlos Cosías), em que cada um se tenta livrar do outro, sem saber bem como. E outros divertidos desvios musicais de cenas típicas da ópera italiana, que é ainda a referência estética mais evidente deste teatro musical. Pelo meio, os inevitáveis momentos espanholados que caracterizam a zarzuela enquanto tentativa de criação de uma “ópera nacional” em língua espanhola, com destaque para um dos mais famosos números de Los Diamantes de la Corona, o bolero “Niñas que a vender flores vais a Granada”, para as duas principais cantoras (muito bem interpretado por Faus e pela soprano Sonia de Munck). O barítono Gerardo Bullón foi impecável (mas canta relativamente pouco como Don Sebastián) e ao baixo-barítono Francisco Santiago só faltou alguma projecção vocal para fazer jus à personagem cómica de Rebolledo, o medroso comandante dos falsificadores.

A rainha-bandida é, afinal, a mais justa e a mais capaz de amar para lá das aparências – e não é o dinheiro uma das “aparências” mais criticadas, precisamente em meados do século XIX, em pleno desenvolvimento capitalista? Em Espanha, esse desenvolvimento e as suas crises conduzirão à revolução liberal de 1868, em que curiosamente o libretista desta zarzuela se envolveu. E se a zarzuela fosse também um sinal cultural do capitalismo do século XIX? As jóias da coroa, pelo menos aqui, são todas falsas. A verdade fica para o amor e para a sua música.

 

 

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