Reforma da fiscalidade verde: como garantir os três dividendos?

A neutralidade fiscal é um imperativo político para garantir que a reforma não represente apenas mais um aumento de impostos. A reciclagem destas novas receitas é o mecanismo que permite a redução de distorções noutras margens fiscais e por essa via eventualmente gerar os tão falados três dividendos - benefícios ambientais, económicos e orçamentais. Não é de todo em todo claro que o projecto do Governo garanta esta virtuosidade da reforma da fiscalidade verde, o que é naturalmente problemático e preocupante.

No seu projecto, divulgado há pouco mais de um mês, a Comissão para a Reforma da Fiscalidade Verde propõe uma reciclagem das receitas fiscais da reforma de forma estável e permanente através de reduções do IRS, da TSU, e de novos créditos fiscais ao investimento ligados a actividades indutoras de aumentos de eficiência energética. Este mecanismo foi adoptado com base em estudos técnicos que mostram que esta alternativa seria a que melhores resultados traria em termos dos três dividendos. A proposta do Governo por seu lado advoga a reciclagem das receitas da reforma em 2015 através de reduções no IRS. Parece omissa sobre os mecanismos de reciclagem a adoptar no futuro e mais ainda parece omissa sobre como acautelar no futuro o princípio da neutralidade fiscal da reforma.

O porquê da mudança na estratégia de reciclagem preconizada pelo Governo é claro. É a maneira de satisfazer todas as sensibilidades políticas directamente envolvidas e desse modo viabilizar e compatibilizar as propostas de reformas do IRS e da fiscalidade verde fora do contexto do Orçamento de Estado. Mas se é compreensível, esta mudança não é inócua. Basta consultar os resultados apresentadas pela Comissão no seu relatório final de há um mês para se verificar que uma reciclagem das receitas através do IRS e sem qualquer ligação a aumentos de eficiência energética, como o que é proposto pelo Governo para 2015, a manter-se no futuro, não teria efeitos económicos positivos e teria efeitos orçamentais indesejáveis. Ou seja, não levaria aos três dividendos.

Deve ser, é claro, reconhecido que o Governo também mencionou na apresentação do seu Projecto que de futuro a reciclagem das receitas deveria ser feita através dos mecanismos sugeridos pela Comissão, os quais, esses sim, garantiriam os três dividendos. Esta menção parece, contudo, ser meramente retórica e desprovida de relevância do ponto de vista legislativo.

E aqui surge uma primeira grande questão. Como é que vão ser implementados os mecanismos de reciclagem fiscal depois de 2015? Pelo que se pode inferir do projecto do Governo os detalhes dos mecanismos de reciclagem no futuro irão ficar à descrição dos futuros parlamentos. Compreende-se a relutância política que leva a não querer colocar limites à autonomia parlamentar futura nesta matéria. Mas tal postura também não é inócua. Sem se comprometerem os parlamentos futuros nesta matéria, como é que é possível estar seguro de que depois de 2015 vão ser adoptados os mecanismos de reciclagem das receitas da fiscalidade verde que garantam a virtuosidade económica e orçamental da reforma?

O que nos leva a uma segunda questão ainda mais profunda. O que é que na legislação proposta pelo Governo vai garantir o próprio princípio da neutralidade fiscal da reforma da fiscalidade verde a partir de 2015? O principio da neutralidade vai ficar explicitado e consagrado na lei ou vai também ele ser deixado ao livre arbítrio, boa vontade, e sentido cívico dos parlamentos futuros? Seria muito mau se a legislação nem sequer impusesse como princípio geral a reciclagem das receitas da fiscalidade verde no futuro. Neste caso, o cenário inevitável seria o de as receitas da fiscalidade verde se transformarem em pouco tempo - eventualmente logo a partir de 2016 - em apenas mais um aumento da carga fiscal para os Portugueses com todos os efeitos negativos que dai adviriam para a economia.

Que fazer face a este cenário? Tem de ser assumido por todas as partes interessadas, aberta e claramente, o papel de charneira da neutralidade fiscal da reforma e da reciclagem criteriosa das suas receitas fiscais. Na prática isto traduz-se em dois requisitos que a legislação nesta matéria tem de safisfazer. Primeiro, o princípio da neutralidade fiscal da reforma no futuro tem de ficar consignada na lei sem a menor ambiguidade. Esta é condição necessária para garantir os três dividendos. Necessária mas não suficiente. Para o ser é fundamental um segundo requisito para lá do anterior. É fundamental que a legislação deixe também consagrados, senão os própros mecanismos de reciclagem propostos pela Comissão, pelo menos a ideia de que os mecanismos de reciclagem a adoptar no futuro terão de ser condicionados à satisfação no médio e longo prazo dos objectivos económicos e orçamentais subjacentes aos três dividendos.

Por detrás destes dois requisitos legislativos que o projecto de reforma da fiscalidade verde tem de satisfazer, fica a necessidade de um entendimento político claro e profundo entre os partidos do arco da governação. Na ausência deste entendimento seria imprescindível pelo menos o compromisso político explícito por parte de cada um destes partidos de que qualquer que seja o próximo governo estas ideias irão ser respeitadas e que esta legislação irá ser implementada criterosamente. Especificamente, é fundamental que todos os partidos do arco da governação se comprometam com uma solução tecnicamente bem fundamentada e que garanta que a reforma fiscal da fiscalidade verde não se torne apenas mais um aumento de impostos.

Sem este tipo de acordo e/ou compromissos político alargado é difícil imaginar uma situação em que se possa garantir o sucesso da reforma da fiscalidade verde em gerar os tão indespensáveis três dividendos e portanto em que se possa garantir a oportunidade e o próprio sucesso da reforma.

Nota: Este artigo de opinião foi escrito antes da entrega no parlamento pelo governo da proposta de lei sobre a fiscalidade verde. O seu autor não encontrou nada nesse documento que aliviasse as preocupações que aqui expressa.

Professor Catedrático de Economia, The College of William and Mary, EUA

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