"Nunca houve uma campanha eleitoral tão falsa como a que vivemos"

A política social vai ter de abrandar. Quem ganhar a eleição vai ter de enfrentar a realidade, diz António Delfim Netto, académico e ex-ministro das Finanças.

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"Esquerda e direita é sinal de trânsito, no Brasil" dr

António Delfim Netto, 86 anos, é uma das personalidades políticas mais influentes na economia do Brasil no último meio século. Professor emérito de economia da Universidade de São Paulo, ministro das Finanças no auge do milagre económico brasileiro, no governo do general Emílio Médici, entre 1967 e 1974, ministro do Planeamento e do Orçamento na fase final da ditadura militar, cinco vezes eleito para deputado federal numa época em que, quando entrava no elevador, “o pessoal do PT saía”, é hoje consultor e colunista do jornal Folha de São Paulo.

Apesar de ser crítico do excesso de ingerência do Governo na economia ou da colonização política das empresas públicas, Delfim Netto elogia a transformação do país na era do PT, considera Lula um “diamante bruto” e diz gostar de Dilma, apesar de fazer as coisas “um pouco atrapalhadas”.

Como explica a recuperação eleitoral de Aécio Neves? Ficou surpreendido?
Voltou-se para o leito normal do rio. Tínhamos um rio correndo, com três candidatos inicialmente, a Dilma Rousseff, o Aécio Neves e o Eduardo Campos. O Eduardo Campos era uma grande esperança da política brasileira. Era neto de um líder socialista, com ideias libertárias na juventude, que foi um grande administrador [Miguel Arraes]. O Eduardo não ia ser eleito. Mas tinha colocado uma estaca muito forte para 2018. O Eduardo morre, o Brasil é tomado de uma comoção brutal, a Marina Silva, que era "vice" de Eduardo, explode e dava a impressão que o mundo tinha mudado. Mas a onda voltou para o seu leito. O resultado de domingo foi exactamente o que teria sido se o Campos não tivesse morrido. Ele não iria mais longe do que foi Marina. Foi uma surpresa porque foi uma mudança muito rápida. A segunda volta vai ser muito competitiva, como sempre se esperou que fosse.

A situação da economia teve o peso que merecia na campanha?
Não. Há duas coisas a considerar: a situação económica e a situação social. O Brasil foi muito beneficiado pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso [entre 1994 e 2002], que fez um plano de estabilização de muito boa qualidade. Se olhar para a inflação foi eficaz, mas ao nível de crescimento deixou muito a desejar. O Lula chega ao Governo num momento muito interessante, quando a China entra na Organização Mundial do Comércio. E começa uma expansão mundial muito rápida, com aumentos importantes nos preços das matérias-primas e dos produtos que exportamos. Recebeu-se um presente externo, um vento de cauda que habilmente Lula soube distribuir. Ele tinha um programa que atendia mais às necessidades das classes menos favorecidas. E teve sucesso.

E isso foi bom para a economia?
Criou-se uma classe média muito mais sólida. O Brasil de hoje tem 200 milhões de pessoas e uma classe média, modesta, mas sólida. Enquanto havia recursos externos, a coisa caminhava mais ou menos bem. Depois de 2010, esse movimento começou a mudar. Dilma, em vez do vento de cauda apanhou o vento de frente. A situação do Brasil hoje não é trágica, é desagradável. Do ponto de vista do controlo da inflação, temos um sistema de metas em que se namorou sempre com o limite superior da meta. Não é nada grave. Não se vai perder o controlo, nada disso. Na parte fiscal, a coisa é mais complicada. A situação já vinha a deteriorar-se um pouco, mas à medida que houve uma redução brutal do crescimento, a situação fiscal ficou muito difícil. Sempre houve um défice de 2,5%, agora vai com 4%. Não é trágico, mas é um negócio ruim. A dívida pública bruta esteve sempre estabilizada em torno dos 60%, agora cresceu um pouquinho. Não se pode dizer que a situação vai para o descalabro, mas não é confortável.

O próximo governo vai ter de produzir ajustes?
Claro que sim. Mas onde há um problema efectivo sério é no défice das contas correntes, que já vai nos 80 biliões de reais [cerca de 27 mil milhões de euros]. É insustentável. Ligado a isso está o fraco crescimento. O crescimento reduziu-se porque se reduziu a produção industrial do Brasil. A coisa é muito séria, pelo seguinte: passou-se 12 ou 15 anos de controlo de câmbio, desde o Governo de Fernando Henrique Cardoso, e nesse período não houve investimento, a indústria não se integrou nas cadeias globais de produção, os exportadores tornaram-se importadores. Produziu-se uma destruição no sector industrial que era dos mais sofisticados do país. Isso vai ser muito grave no futuro. Até porque os preços agrícolas estão a baixar e há uma acumulação de stocks. No futuro vai haver uma redução do valor das exportações agrícolas. Se não houver a exportação industrial para compensar, vamos ficar com uma situação delicada nas contas correntes. Tudo isto só é passível de arranjo com um bom programa que enfrente com cuidado a parte monetária, que dure 19 ou 24 meses. Tem de se encontrar um mecanismo para se controlar as despesas públicas. Não há espaço para que haja mais tributação. Na verdade, deu-se menos ênfase ao crescimento e mais à distribuição.

Foi um erro?
Não. Mas a velocidade com que isso foi feito não pode continuar. Já não há o efeito externo.

Mas todos os candidatos referiram que é necessário reforçar as políticas sociais.
Nunca houve uma campanha eleitoral tão falsa como a que nós vivemos. Era um show pirotécnico. Nenhum dos candidatos expressou uma ideia séria. Todos tentaram superar as dificuldades não as mencionando.

Dada a situação fiscal, a baixa taxa de crescimento e o desequilíbrio externo, os programas sociais são sustentáveis?

Seguramente que os programas sociais importantes são sustentáveis. Os programas sociais custam pouco. O Bolsa Família custa 0,5% do PIB. Agora, fez-se o que se fez e agora daqui para a frente não precisa mais. Não se podem ampliar os processos distributivos, que foram fundamentais. O que tem de se fazer é encontrar uma saída para cada um dos programas. Temos o Bolsa Família, que é excelente, mas tem de se conseguir que, pela educação, as pessoas saiam do programa. A possibilidade de crescer mais depressa que o crescimento terminou. Já não há recursos. A pergunta a que os candidatos têm de responder é: como é que o Governo consegue poupar mais? Mas não se vão destruir os programas sociais. O Brasil está a construir uma sociedade civilizada e não vai voltar para trás. O que não se pode continuar é neste desequilíbrio entre o crescimento e a distribuição. Tem de haver mais harmonia. O processo distributivo vai reduzir a velocidade e o processo de crescimento vai ter de aumentar para o alimentar.

A classe média do Brasil está consciente dessa realidade?
Não. Ainda não. A classe média aceita todas as promessas de que tudo vai continuar. Isso não vai continuar. Ou por bem ou por mal, a restrição física vai impor-se. Não se pode violar permanentemente as regras da contabilidade nacional. O que eu digo é o seguinte: os aumentos desse processo vão ser cada vez mais lentos. Por enquanto, a classe média não tem a mínima noção das dificuldades que estão à frente.

Mas a rejeição da classe média ao Governo não indica de certa forma algum mal-estar?
Sim, isso está ligado ao nível de educação e de esclarecimento. As pessoas com mais informação já sabem que caminhamos para bater na parede. Só que essa informação não chegou ao eleitor comum. Dilma ainda teve 40% dos votos válidos, e se olhar o grosso é no Norte e no Nordeste, os mais beneficiados dos programas sociais. Nós não podemos perder esses programas. Eles mudaram a cara do Brasil. Eles construíram uma sociedade bastante razoável. Mas eles não aguentam mais. Todo o mundo tem consciência de que isso tem de mudar. Mesmo a Dilma vai mudar. A realidade vai impô-lo. O sistema é um jogo dialéctico entre a urna e o mercado. O sufrágio universal mais o mercado tendem a produzir uma sociedade mais civilizada. Se o Governo é economicista, quer maximizar o crescimento e esquece a distribuição, a urna vem e derruba o Governo. Se a urna é distributivista, faz tudo o que é absurdo, um dia o mercado vem e derruba o Governo.  

Acusa-se o Governo de ser excessivamente estatista e que interfere de mais. Concorda?
O problema do PT é que nunca percebeu como a economia funciona. O PT é voluntarista, acha que sabe mais do que o mercado. Acredita que não há restrições económicas. Acredita que, se houver força política, dois mais dois podem ser cinco. O PT está a aprender lentamente. Aprendeu muito. Em costumo brincar dizendo que, com tempo suficiente, até o PT aprende.

Os brasileiros aceitariam um Governo que apontasse para um abrandamento dos programas sociais?

Quem disser isso perde as eleições. Como em todo o mundo. Só na Alemanha é que não é assim. É um problema de informação. Eu não acredito que Dilma ou Aécio digam que precisamos de fazer um ajuste.

Quem tem mais credibilidade hoje para fazer o ajuste de que o Brasil precisa?
A Dilma tem muita credibilidade e o Aécio tem muita credibilidade. Mas depende de como eles se vão apresentar.

Quem tem a melhor equipa económica?
Provavelmente o Aécio.

Que é por vezes acusado de estar muito à direita.
Esquerda e direita é sinal de trânsito, no Brasil. Eu tenho a sensação de que a Dilma entendeu o que está a acontecer. Eu gosto da Dilma. Ela é absolutamente correcta. Tem uma boa intenção. Mas faz as coisas um pouco atrapalhadas.

Por que razão o empresariado não partilha da sua avaliação?
Primeiro, não entenderam um facto fundamental. Não entendem este processo distributivo, inclusivo, o uso de um bónus externo para criar uma classe média, para criar cidadãos. Há preconceitos muito sérios. "Ninguém merece a Bolsa Família? Porque eu me fiz, cresci, trabalhei e não precisei de ninguém. Eu construí a minha casa nos sábados e domingos, e esta gente está recebendo de presente. É injusto", dizem. É uma incompreensão do processo civilizatório. Há um preconceito gigantesco, que não é justificável que vem do seguinte: "Eles não merecem." Na minha opinião, é completamente falso. As pessoas estavam numa situação difícil não porque quisessem, mas porque não tinham a menor oportunidade. Hoje, ele está na Bolsa Família e os filhos estão na escola. Hoje, uma empregada doméstica sabe que a única forma de o seu filho ascender na sociedade é pela educação. Se olhar, a revolução no Brasil foi feita pelas mulheres. Se pegar nessa empregada doméstica, ela virou manicura, de manicura foi trabalhar no call center, do call center foi para uma loja. Foi evoluindo. Usava sabão de coco, hoje usa sabão Dove. Houve uma mudança na estrutura da sociedade e essa mudança é muito bem-vinda. Foi isso que o Lula intuiu. O Lula é uma inteligência privilegiada.  

Nessa vontade de corrigir a herança histórica da desigualdade, o PT é acusado de se apropriar do aparelho do Estado e de colonizar as empresas públicas...
Apropriaram-se do Estado de maneira incompetente. Para ser nomeado, precisa de ser companheiro de passeata [comício de rua]. Não precisa de um bom curso. Isso vai mudar. O PT vai sair um dia. Agora ou em 2018. Por que é que a Dilma tem 40% dos votos? Porque não se desceu nenhum degrau. Quando se descer, isso muda. Os eleitores aprendem. Essa gente que faz a crítica fácil, que diz que foi tudo errado, que diz que hoje as pessoas não se esforçam, não aprendeu. Isso é falso. O Brasil mudou profundamente. Eu era ministro em 1972 e houve uma seca no Nordeste. Fomos lá e havia quatro milhões de trabalhadores comendo bananas e macaxeira. Voltei lá em 1982 e ainda tinha uma frente de trabalho de dois milhões de pessoas, havia assaltos, destruição de supermercados, desarranjos gerais. Voltei lá agora, em que houve uma seca terrível, e não tem nada. Está tudo a funcionar. O avô está aposentado, o pai com a Bolsa Família e o filho está na escola. Houve um progresso gigantesco. Está a funcionar. Quando olho o resultado da eleiçã,o eu não me surpreendo. Só se imaginarmos que o povo é muito burro e vai votar contra ele. Não vai.

Faz sentido que o Estado tenha três bancos públicos?
É uma questão de opção. Vai privatizar a Petrobras [a empresa estatal do petróleo]? Não precisa de privatizar a Petrobras como condição para o desenvolvimento económico. Ela foi vítima de uma apropriação. Precisamos é de voltar a ter empresas estatais competentes, como tivemos no passado. A privatização é um avanço extraordinário, eu defendo as privatizações. O pior é que o PSDB não soube defender as suas privatizações. Não há privatização que não levante dúvidas, na Europa ou aqui, mas na sucessão de Fernando Henrique Cardoso o PSDB [partido do ex-Presidente e de Aécio Neves] não teve convicção para as defender politicamente. Escondeu-se. Deu a impressão de que as privatizações eram más. Não foram. Onde se privatizou a qualidade do serviço melhorou. Ter um banco de Estado não tem a menor importância. É até útil. Mas o BNDES [banco público destinado ao investimento] foi mal usado. É um banco de alta qualidade, com um funcionalismo muito bem preparado. O Banco do Brasil tem gente de altíssima qualidade, que dá lucro. É claro que o Estado está onde não precisava de estar. Houve erros grosseiros de política. Mas note-se que jamais se faria um programa de casa popular sem um instrumento como a Caixa Económica Federal.

É muito crítico do aparelhamento do Estado, do intervencionismo, do desvirtuamento da relação entre a urna e o mercado, mas faz uma avaliação globalmente positiva do Governo. Porquê?
Porque houve um progresso gigantesco Não adianta tentar negar esse projecto. Precisamos de o reconhecer e de ver as coisas que precisam de ser corrigidas. Não deu tudo errado. Se Aécio insistir que deu tudo errado, que é preciso mudar tudo, não vai ganhar a eleição. Uma das coisas muito importantes nesse processo é a verdade. Os dois lados escondem a verdade. Um só chama a atenção para metade da verdade. O outro, a oposição, nega a verdade inteira. O Brasil não precisa de um programa dramático de ajustamento. Precisa de alguém que perceba o processo e que faça mais.

No seu percurso, hoje é um homem mais à esquerda?
Eu nasci socialista fabiano, aprendi que aquilo tinha um defeito fundamental porque negava a propriedade privada e livrei-me de Marx estudando o George Stigler. Isso foi mudando a minha vida. Eu acho deplorável essa ideia de direita e esquerda, imaginando que a direita é a brutalidade e a esquerda a salvação. Quem funcionou melhor? Quem tinha mais mercado. As 15 economias desenvolvidas foram as que conseguiram manter o jogo entre a urna e o mercado.

A chave para o Brasil é por isso dar um pouco menos de atenção à urna e um pouco mais ao mercado?
É isso aí.

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