Sissi esmaga no Egipto, mas será apenas Presidente, “não deus”

Os números ainda não são finais e a abstenção pode não ter sido tão esmagadora como faziam crer as primeiras indicações. Os votos nulos ultrapassam os votos conseguidos pelo segundo candidato.

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Apoiantes de Sissi celebram a sua vitória no centro do Cairo Amr Abdallah Dalsh/Reuters

Os últimos dias foram confusos, como tantos outros nos últimos três anos no Egipto. Mas independentemente dos números finais da abstenção e de votos nulos, nunca houve dúvidas sobre o resultado final das presidenciais de segunda e terça-feira (e afinal, também quarta): Abdul Fattah al-Sissi foi o escolhido por 93 a 96% dos egípcios que foram às urnas e cujo voto foi validado pelos juízes que supervisionaram as eleições em todo o país.

Sissi junta-se assim a uma longa linha de líderes saídos da hierarquia militar, todos os Presidentes do Egipto com excepção de Mohamed Morsi, candidato da Irmandade Muçulmana, eleito em 2012 e derrubado por Sissi, então ministro da Defesa, no golpe de Julho de 2013. O resultado, que ainda não é total nem final (falta a validação da Comissão Eleitoral), não deixa de ser memorável: nas últimas vezes que foi a votos, o ditador Hosni Mubarak, afastado em Janeiro de 2011, foi eleito com 88 e 89% dos votos.

Nem a vitória nem a sua dimensão surpreendem: o Egipto de Sissi esmagou todos os movimentos dissidentes e deteve quase todos os potenciais rivais, dos islamistas aos jovens revolucionários progressistas. Teve um rival, sim, o nacionalista de esquerda Hamdeen Sabahi, mas este arrisca-se a conseguir menos votos do que os votos nulos: esta quinta-feira estava com 3,5% (menos de 800 mil votos), enquanto os nulos excediam já um milhão – houve eleitores a inscreverem nos boletins os nomes de dissidentes egípcios ou de estrelas do futebol como Cristiano Ronaldo.<_o3a_p>

Este resultado, diz Karim Bitar, director de investigação no Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, think tank de Paris, “devolve-nos a uma configuração que esperávamos nunca mais rever depois das revoluções de 2011”, que derrubaram Ben Ali na Tunísia, Mubarak no Egipto, Muammar Khadafi na Líbia, enquanto faziam tremer ditadores do Magrebe ao Golfo Pérsico. <_o3a_p>

Marechal de óculos de sol<_o3a_p>
“Poucas pessoas teriam imaginado na queda de Mubarak que, três anos mais tarde, um marechal de óculos de sol, novo faraó, se fizesse eleger com 96% sem ter sequer apresentado um programa ou feito campanha”, afirmou à AFP este especialista em Médio Oriente. <_o3a_p>

A única falha do plano de Sissi – e das instituições do Estado, dos media e da comunidade empresarial – foi acreditar que a narrativa do salvador, único homem capaz de “limpar o país dos terroristas” e recuperar a economia levaria os egípcios em alegre romaria até às assembleias de voto. Perante as urnas quase vazias de segunda-feira o pânico foi evidente, com apresentadores de televisão a chamarem “traidores” aos que não votassem e o Governo a ameaçar multar os abstencionistas e a alargar a votação, primeiro por horas, depois a mais um dia.<_o3a_p>

Afinal, parece que a abstenção não foi assim tão esmagadora: terão votado pelo menos 25 dos 54 milhões de eleitores registados, um número ainda assim longe dos 40 milhões (80%) pedidos por Sissi. Há vídeos no YouTube onde um homem coloca dezenas de boletins com votos em Sissi numa urna que é levada por outro homem fardado, mas nenhuma forma de confirmar estas alegações. <_o3a_p>

As eleições tiveram observadores internacionais, incluindo uma missão da UE liderada pelo eurodeputado Mário David, que lamentou “a falta de participação de vários actores” da oposição, que “comprometeu a participação de todos”. Como escreve Shadi Hamid, analista do Centro Saban (dos EUA), “não temos nenhum meio de verificar os números do Governo, não há nenhuma contagem paralela e são poucos os observadores internacionais”. “Até ontem [terça-feira], a taxa de participação era bem mais baixa. Agora, de repente, saltou para os 46%?”, interrogou-se Hossam Moanes, director de campanha de Hamdeen Sabahi.<_o3a_p>

Um homem com coragem<_o3a_p>
Em 2012, Morsi venceu à segunda volta com 52% dos votos – e uma participação de 52% –, depois de uma primeira volta em que se apresentaram 11 candidatos, incluindo cinco com bases de apoio suficientes para acreditarem numa boa votação.<_o3a_p>

Quando os resultados começaram a ser conhecidos, na terça-feira à noite, milhares de apoiantes de Sissi dirigiram-se à Praça Tahrir, na capital, e cantaram e dançaram em comemoração. “Os empresários estão muito felizes. Precisamos de reformas e oportunidades reais… de um homem com coragem para tomar decisões”, comentou a Federação das Indústrias Egípcias. Quarta-feira, a maioria dos jornais optou por títulos de aclamação, como o estatal Al-Akhbar, que declarou ser “um dia de esperança para todos os egípcios”.<_o3a_p>

O problema, para Sissi, é que a entronização não correu como esperava, o que torna todas as tarefas futuras ainda mais complicadas – como a obrigatoriedade de mexer na política de produtos subsidiados pelo Estado, como a gasolina e a electricidade, que desencadeará sempre protestos. <_o3a_p>

Com o caos em redor da taxa de participação e o triste espectáculo dado pelas instituições do Estado desde segunda-feira, defende o analista Mahmoud Salem num texto publicado no site Al-Monitor, “a lenda de Sissi, o deus, acabou antes de ele tomar posse, e nasceu a de Sissi, o Presidente de um Estado corrupto e incompetente”. E foi assim que, “em menos de dois dias, o homem foi obrigado a descer à terra”. Agora, continua Salem, “tem de enfrentar a nova realidade” e perceber que “não está no Exército” e até que “pode ter sonhado demasiado”.<_o3a_p>

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