As urnas vazias que estão a provocar o pânico entre os generais egípcios

Sissi já ganhou, mas uma grande abstenção será humilhante para o homem que disse não querer ser Presidente e só “aceitou” quando colocado perante a exigência de toda uma nação.

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Em muitas assembleias estiveram mais militares do que eleitores Amr Abdallah Dalsh/Reuters

Os egípcios estão fartos de muita coisa, mas isso não chega para lhes tirar o sentido de humor: há votos (os boletins foram fotografados e publicados em redes sociais) em Cristiano Ronaldo ou Sergio Ramos e posts onde se goza com o terror que os apresentadores de televisão não conseguem disfarçar perante imagens sucessivas de assembleias de voto desertas.

Compreende-se. O palco está preparado, a passadeira vermelha também. Há quase um ano que se vendem chocolates, porta-chaves e cartazes com o rosto do salvador. As eleições foram marcadas, depois de diligentemente se terem detido os mais importantes rivais e ilegalizados partidos e movimentos. O que é que podia falhar? A participação, como prova o pânico que desde segunda-feira atravessa o regime.

As presidenciais marcadas para segunda e terça-feira são as segundas no Egipto desde a queda do ditador Hosni Mubarak, em Janeiro de 2011, e seguem-se às primeiras eleições livres e democráticas da história do Egipto, ganhas por Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, no Verão de 2012 (votaram então 52% dos eleitores). No início de Julho do ano passado, a hierarquia militar aproveitou uma vaga de protesto contra o Governo e fez um golpe de Estado. Desde então, generais, empresários, media, todo o aparelho do Estado e todo o poder da economia preparam a entronização do homem que derrubou Morsi, o marechal Abdul Fattah al-Sissi.

Sissi não fez campanha nem apresentou um programa, mas apelou a uma ida às urnas gloriosa. Chegou a concretizar: para “esmagar o terrorismo” e “recuperar a economia”, queria ser mandatado por 80% dos eleitores, ou 40 milhões de egípcios. No primeiro dia, a participação não ia além dos 15%.

Primeiro, a Comissão Eleitoral anunciou que terça seria feriado nacional; já durante a própria terça, veio dizer que as urnas encerrariam uma hora mais tarde; a meio do dia, o Governo ameaçou multas de 50 euros para quem não votasse sem justificação e obrigou um popular centro comercial do Cairo a encerrar mais cedo; à noite, soube-se que as urnas continuariam abertas ao longo de quarta-feira.

O alargamento do voto a um terceiro dia foi oficialmente justificado pela onda de calor – sim, houve horas em que os termómetros chegaram aos 42 graus na terça. Mas impõe-se um certo realismo: a Irmandade Muçulmana, ou o que resta da confraria ilegalizada pelos militares, com milhares de líderes e apoiantes atrás das grades, apelou ao boicote. O mesmo fizeram parte dos jovens revolucionários de esquerda que iniciaram a revolta, em 2011 – alguns, aliás, como os chefes do Movimento 6 de Abril, também estão presos desde Dezembro por se terem manifestado contra a nova lei que limita o direito às manifestações.

Para além de todos os apelos ao boicote – e apesar de nos boletins surgir um segundo nome, o do nacionalista de esquerda Hamdeen Sabahi, que arrancou um inesperado terceiro lugar na primeira volta das presidenciais de 2012 – há também a certeza, partilhada por todos os egípcios, de que o vencedor estava determinado antes de as eleições serem sequer marcadas.

“Traidores, traidores, traidores”
Em todos os países por onde a revolta se tentou fazer desde 2011 ficaram célebres as escolhas de programação das televisões nacionais, normalmente documentários turísticos ou de propaganda nacionalista, ao mesmo tempo que nas ruas aconteciam protestos gigantes. Já o ano passado, enquanto as forças de segurança desmantelavam à força concentrações de apoio a Morsi, matando 1400 pessoas, a TV egípcia emitia programas de homenagem aos militares e descrevia os manifestantes, a esmagadora maioria civis desarmados, como “terroristas”.

Por estes dias, há muitas pessoas a perder a cabeça nos vários canais de televisão. Um comentador chamou a todos os que não votem “traidores, traidores, traidores”. Um apresentador ameaçou cortar os pulsos, outro ofereceu-se para beijar os pés dos pais egípcios e despir-se em directo se as pessoas enchessem os centros de voto, enquanto defendia que as mulheres que fossem às compras em vez de votar “deviam ser mortas a tiro”.

“Prenderam a juventude, vilipendiaram-nos, acusaram-nos de traição, dizem-lhes que não serão libertados e depois querem que eles participem?”, escreve na sua conta de Twitter o escritor e jornalista Wael Eskandar.

“As notícias que me chegam em termos de participação sugerem que alguma coisa não está acorrer como o planeado pelas autoridades interinas”, disse à revista Time Aziz El-Kaissouni, membro do think tank Conselho Europeu de Relações Externas no Cairo. “Parecem desconcertados e estamos a assistir ao que tentam fazer, confusos, para gerir a situação.”

 

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