"Hoje a subversão está em ser clássico"

O mais conhecido criador de moda brasileiro começou uma parceria com a Vista Alegre. Aos 20 anos de uma carreira que acompanhou a maturação da moda brasileira, passou das caveiras e da noite de São Paulo a definir-se como “uma pessoa clássica”.

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Alexandre Herchcovitch é o mais conhecido criador de moda brasileiro
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Colecção da linha jeans Primavera-Verão 2012 FFW
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Colecção Outono-Inverno 2008 AFP
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Colecção Primavera-Verão 2010 AFP
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Colecção Outono-Inverno 2012 Reuters

Quem trabalha com ideias “tem ideia todo o tempo, né?”, sorri o mais importante criador de moda brasileiro, Alexandre Herchcovitch, num início de noite com o Tejo e as luzes de Lisboa a reluzir ao seu lado. “Pisei dentro das fábricas e já começou”, explica sobre os primeiros passos de uma colaboração entre o designer das caveiras e do underground de São Paulo e a portuguesa Vista Alegre. Herchcovitch, que cumpre 20 anos de carreira na moda do Brasil e do mundo, é o novo nome das artes e do design chamado a colaborar com a casa de porcelanas.

Os resultados desta primeira visita exploratória do brasileiro às fábricas da Vista Alegre, mas também da Bordallo Pinheiro e da Atlantis (todas parte do grupo Visabeira) só serão conhecidos no final deste ano ou até mesmo no início de 2015, já curada a febre do Mundial de Futebol no Brasil e já passadas várias colecções de pronto-a-vestir de Herchcovitch, que semestralmente desenha para homem e mulher e uma linha de jeans. Foram dois dias a mergulhar no universo de uma clássica marca portuguesa e, como explica à mesa de um restaurante empoleirado na colina do Castelo de São Jorge, para ele a porcelana não é um lugar estranho. Diz-se “consumidor da Vista Alegre faz muito tempo, e da Bordallo também”, e por isso a resposta ao desafio da empresa portuguesa foi imediato. O seu nome junta-se ao de Sacha Walckhoff, director criativo da Christian Lacroix, mas também aos artistas brasileiros tornados Bordalianos e a outras colaborações do grupo com nomes das áreas criativas.

As mãos tatuadas de Herchcovitch gesticulam delicadamente enquanto fala ao PÚBLICO dos seus 20 anos de carreira num país que já nem se pode dizer que está na moda – o Brasil vive um pico de popularidade e a sua moda é há anos um dos carimbos no passaporte da sua viagem triunfal pelo mundo. A moda do Brasil, aquela que vemos à distância de um oceano feita de biquínis e cores vivas, talvez alguns tucanos, bananas e palmeiras, é mais do que isso. É um gigantesco mercado de design em que os nomes próprios contam – e Alexandre é próprio do Brasil, é o criador que a Folha de São Paulo define como “o maior estilista do Brasil”, conhecido pelas caveiras que se tornaram a sua imagem de marca tanto no seu país quanto nos mercados em que se afirmou, como o nova-iorquino (onde apresenta as suas colecções semestralmente, além de na São Paulo Fashion Week), o parisiense e o japonês.

E o menino loiro de olhos azuis que de dia estudava no colégio judeu ortodoxo e que à noite vivia a noite paulista tem um certo Brasil no corpo. Porque o seu interesse pela anatomia, espelhado nas linhas e pontos que lhe desenham na pele tatuada as falanges da mão direita, é um pouco brasileiro. Afinal, este é o país cujos nomes maiores da moda, internacionalmente, são ainda os das modelos que o público local aplaude quando ribombam passerelle fora.  

Para Herchcovitch, essa relação com o corpo está muito na cabeça. “Quando era criança gostava muito de símbolos ligados a terror e a caveira principalmente, sempre coleccionei caveiras de brinquedo”, recorda sobre o símbolo que se confunde com a sua obra – e, aliás, com a de outro Alexander, o McQueen seu contemporâneo. Mas aos 14 anos, “eu e um amigo não encontrávamos no mercado camisetas de caveira, tinha de rock mas era uma outra cara... Peguei uma foto de um crânio, desenhei à mão uma caveira e fiz um silk screen para mim e para ele. Foi a primeira peça que fiz na vida e até hoje a mais vendida”, constata. “A caveira vai-me seguir até ao meu túmulo”, ri-se, “e para mim é um símbolo de vida, não de morte. A caveira e os ossos são o que sustenta a gente. É um símbolo bonito, de vida, que relaciona directo com o rosto das pessoas”.

Tradição portuguesa
Alexandre Herchcovitch, anfitrião de um dos desfiles mais concorridos da São Paulo Fashion Week, tem um interesse pendular pela relação Portugal-Brasil. “A primeira vez que vim para cá queria perceber qual a relação do Brasil com Portugal, não só da língua, mas o que é que a gente tem do português. Essa busca ainda não acabou, ainda tenho muita coisa para fazer aqui”, diz ao PÚBLICO sobre a sua paixão pela “tradição que conserva” Lisboa. E a palavra persegue-nos conversa fora, porque é também a sua escolha para descrever a marca que o convidou a desenhar ainda não sabe bem o quê – “tradição”. Primeiro, serão “peças especiais”, depois “chegar a tudo que puder fazer” dentro das linhas da Vista Alegre.

Na outra mão, a esquerda, Herchcovitch tem desenhada uma folha de um bloco de notas em branco, pronta para preencher com as suas várias tarefas. Ao longo de 12 anos, diz-nos, a importância do licenciamento do uso do seu nome noutros produtos que não roupa passou de 1 ou 5% para quase 50% do facturamento da sua marca, que é detida pelo grupo brasileiro InBrands, e criou um departamento interno só para lidar com essa área de negócio. Já fez fardas para a McDonald’s, brincou com o Mickey e com o universo Warner Brothers, assina linhas de óculos, relógios, pensos rápidos, isqueiros, sapatos para a Melissa ou ténis para a Converse. “Enquanto a minha linha de prêt-a-porter masculina e feminina tem um limite de acessibilidade, o licenciamento é ilimitado. Isso é legal”, sorri. “No caso da Vista Alegre, não estamos a falar de licenciamento de um produto mais barato - é um produto premium, que tem super a ver com a minha roupa”, garante, nada preocupado com a forma como vai casar a sua “subversão” ao clássico da Vista Alegre.

“É isso que me atrai. Apesar de ter vários projectos mais arrojados, eu sou uma pessoa clássica”, diz. “No início da minha carreira, o que mais me inspirou foi a cena underground de São Paulo, mas hoje a subversão está em ser uma pessoa clássica”, aplaude ironicamente. Duas décadas levaram-no da cabine de DJ e das drag queens dos chamados “inferninhos” da noite de São Paulo (a sua cidade, que “é um caos”) para a loja de porcelanas. “Eu sou assim, desse jeito. Uso essa roupa. Na minha casa uso talheres e loiças clássicas e é esse o meu gosto. Depois de tudo o que já fiz na minha vida, eu sou um homem clássico”, ri-se.  

“Porém”, pontua, a sua marca “não é tão clássica. O modo de fazer a roupa e todos os materiais são os melhores possíveis, só que tem alguma subversão”, manipulando o cânone à sua maneira. Os exemplos que dá são, naturalmente, da sua paixão primeira. Fala de alfaiataria e de como pode dar-lhe o seu toque, como planeia fazer nesta parceria com a empresa portuguesa. Mas admite: “Quando crio produtos licenciados com outra marca, recebo muito direccionamento, é quase um trabalho a quatro mãos. Quando faço a minha própria colecção, eu faço só da minha cabeça”.

Depois de dois dias a visitar fábricas e a conversar com quem lá trabalha (“eu pergunto muito”), Alexandre Herchcovitch quer andar em Lisboa, pelas ruas da Sé e do Castelo, aproveitar o fresco depois do calor de São Paulo e dos desfiles recentes tanto na sua cidade quanto em Nova Iorque. Deixou a cidade quando começava a 42.ª edição da ModaLisboa, onde há dez anos se apresentou como designer convidado. Na sua cidade, não tem o dom do anonimato que o resguarda em Portugal, mas diz não sentir o peso do título de “maior estilista do Brasil” – “Não sou hipócrita. Sei exactamente o meu peso. Não diria que sou o mais importante, mas sou um dos mais importantes. Tem um grupo que contribui para a moda brasileira”.

Contudo, o fenómeno Herchcovitch, que capturou numa t-shirt com a tal caveira o espírito dos anos 1990 brasileiros, é um pouco mais do que isso. “Fui o primeiro estilista que teve mais sucesso que saiu de uma faculdade de moda” e de três faculdades de moda que existiam em 1993, hoje há “mais de 160 no Brasil”. O seu percurso acompanhou a passagem de uma cultura de moda emergente a um culto – hoje o Brasil vê este sector como uma indústria trabalhada ao nível governamental e, ao mesmo tempo, é invadido pela concorrência das grandes marcas de luxo atraídas pela vitalidade económica tropical.  

Agora, “a moda brasileira está sofrendo. Está sob alerta. Tá farol amarelo”. Os custos de produção, a perda de mão-de-obra especializada, preocupam-no. Criativamente, é a ginga do brasileiro habituado a lidar com a adversidade que mantém a chama – “isso é verdade, não é demagogia”.

A velocidade dos dias, aos 42 anos de fricção fashion constante, não o atrai como dantes. Procura a calma, a família, a casa. “Ainda me entusiasmo com pequenas coisas, não com grandes coisas”, e menciona o novo estímulo da colaboração com que vai pôr as mãos na loiça.

Lá fora, algumas colinas ao lado, a manifestação dos sindicatos policiais agita-se frente à Assembleia. No Brasil, envolveu-se nas manifestações do Verão passado e numa polémica no Twitter relacionada com a situação política do seu país que o fez deixar a rede social. “A minha vida não é uma vida pública, já me expus muito, hoje muito menos. O que eu gosto de verdade é de construir roupa. Ponto. Tudo o resto, a notoriedade, é resto mesmo.”

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