A moda é um corpo (brasileiro)

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Gisele Bündchen, Lula da Silva e o escrete. Todos juntos, em corpo ou em espírito, na São Paulo Fashion Week, que hoje termina. Como uma top model, Bill Clinton e a ginga do biquíni ajudaram a criar uma das semanas de moda emergentes mais bem sucedidas do mundo. Por Joana Amaral Cardoso, em São Paulo

Por momentos estamos no Novo Brasil - a expressão é propaganda do Governo de Lula da Silva, mas parece ser daqueles chavões que, de tanto se repetirem na TV ou nas bocas de decisores, fazem um país acreditar. Já sabemos que Deus é brasileiro em alturas de Mundial de Futebol e que "todo o mundo adora o Brasil", como diz Paulo Borges, responsável pela organização da São Paulo Fashion Week (SPFW).

Mas há momentos assim, como quando se vê uma Eva Herzigova de roupa de banho cheia de brilhos e se intui: photo opportunity na Fashion Week. E vimos. Momentos em que tudo se conjuga para que Ana Salazar aposte em ficar três estações na SPFW, momentos em que um país vê a sua moeda tradicionalmente pobre valorizar-se, momentos em que a Monocle e a Wallpaper dedicam edições à força criativa e global do tal Novo Brasil. Períodos e ciclos de história recente que tornam uma semana de moda e um corpo nacional (leia-se Gisele Bündchen, mas lá iremos) numa oportunidade para pensar, afinal, porque raio está parte do mundo a olhar para esta SPFW com olhos de perguntador.

Junte-se apenas mais um ingrediente, ainda assim de peso e a triplicar, à equação: três candidatos à presidência na SPFW à conversa com Paulo Borges, figura unificadora da agora passível de ser chamada "moda brasileira". Marina Silva, José Serra e Dilma Rousseff são os candidatos à sucessão de Lula da Silva, o Presidente que fez amizades mundo fora, que expandiu a sua rede de embaixadas e usou a sua cultura samba-light-tropical-miscigenado para mostrar ao globo que merece um lugar no Conselho de Segurança da ONU e que está tão ou mais emergente do que a China ou a Índia.

"Um deles será Presidente", congratula-se Paulo Borges após o desfile de estreia de Ana Salazar na SPFW, ali aceite segundo um crivo cada vez mais apertado próprio de uma semana de moda que cresceu em tamanho, financiamento e divulgação internacional.

Com os três candidatos falou sobre inovação, moda e as inefáveis indústrias criativas, temas que ocupam o director da Luminosidade, a plataforma de moda que há 30 anos organiza a SPFW (e, desde há duas edições, a Fashion Rio, vocacionada para o beachwear). Trabalha em moda em conteúdos, revistas, portais Web e no diálogo entre a indústria, os artesãos, os criadores e as marcas. A SPFW passa em grande parte por ele. E ele acredita que "a moda brasileira e esse mercado global para ela ainda não estão prontos". Mas estão a caminho.

Roda gigante

Ora veja-se: há 15 anos, quando nascia a SPFW, uma imprensa de moda brasileira consolidava-se, saída das redacções de cultura dos jornais. Cá fora, muito pouco ou nada se sabia sobre a roupa do Brasil, fora as sungas e os páreos. O consumo era interno e disperso. Em 2009, São Paulo aparecia um pouco por todo o lado na Internet, na imprensa mundial, na blogosfera.

Um ranking do Global Language Monitor que mede tudo isso elevava, numa subida de 25 posições, a SPFW ao oitavo lugar entre as capitais de moda do mundo, suplantada só pelas quatro grandes (Londres, Paris, Milão e Nova Iorque), Los Angeles, Roma e Hong Kong. Um ano antes, Suzy Menkes, editora de moda do International Herald Tribune, descrevia a SPFW: "Cor, estampados e hot body look."

A urbana Dazed and Confused escrevia em Fevereiro deste ano, depois de uma visita à Bienal do Parque Ibirapuera, onde se realizam os desfiles (quatro salas) e por onde passam cerca de cem mil pessoas por edição: "São Paulo ganhou um lugar significativo no calendário repleto de semanas de moda por desenvolver e apresentar a sua personalidade única e distintiva." Há muitas marcas ainda desconhecidas do grande público e do especializado, outras tantas reconhecíveis mas com pouco mercado fora do Brasil (95 por cento das vendas são internas), como é o caso de Alexandre Herchcovitch, da Osklen, cuja loja no Chiado lisboeta fechou, ou de Glória Coelho. E há outras que apostam forte, como a Colcci (com loja no Chiado), que com a top das tops Gisele Bündchen (ela outra vez) fechou ontem o penúltimo dia de desfiles.

Em 2011, o caso mudará um pouco mais de figura. O Fashion Rio terá todas as marcas de roupa de praia, inclusive as que desfilavam na SPFW, para se tornar no maior evento mundial do sector (e destronar Miami). Em São Paulo, onde está grande parte do dinheiro, uma espécie de Catalunha brasileira, ficará o design de autor. "Aproximadamente 50 por cento da economia do Brasil é desenvolvida no estado de São Paulo e 17 a 20 por cento disso na cidade de São Paulo", contabiliza Paulo Borges.

"Daqui a 10/12 anos, ao completar-se o ciclo que nos propusemos na SPFW, por coincidência, São Paulo estará entre as três cidades mais ricas do mundo e moda é isso - estar ligado à capacidade de consumir, investir, inovar."

Nas salas amplas da Bienal, no frio de um Inverno em contraciclo com a ideia feita do que é o Brasil, anda-se com facilidade. Cem mil pessoas em cinco dias? Sim, estão nas salas de marcas, publicações e afins, mini-festas a acontecer enquanto no centro do edifício de rampas elegantes, de Oscar Niemeyer, gira uma roda gigante para fashionistas - o Brasil exporta-as para o Rock in Rio mas também tem consumo interno de rodas gigantes.

A imprensa internacional está presente em grande número, mas são os brasileiros que vencem por domínio de comparência, twitandofuriosamente ou comentando nos blogues a presença de Paris Hilton no desfile da Triton, da americana Chanel Iman na Rosa Chá. Mas claro, a grande estrela era a recém-mamã Gisele, guardada para ontem à noite.

Hilton atrasou os desfiles

Ainda assim, a SPFW não vive de nomes sonantes. A vinda de Hilton, que atrasou ligeiramente os desfiles, foi motivo de ironia e Eva Herzigova foi recebida com solenidade. Mas claro que os seus nomes se reflectiram na cobertura mediática. Aliás, as modelos são um factor-chave nesta história da ascensão sem queda da SPFW. Em 2000, Gisele era eleita a mais bela modelo do mundo. Passados dez anos, é a mais bem paga e valiosa. E é assim há seis anos consecutivos.

Quando perguntamos à jornalista da Fashion TV, Leila Jensen, de França, o porquê de tanta atenção dada à SPFW, a resposta é imediata: "As modelos, todas - conhecidas e desconhecidas. São top of thepops." A SPFW não é a mais conhecida das semanas de moda, nem sequer num país com uma cultura de moda forte, como é o caso de França. Mas Gisele, Adriana Lima ou Isabeli Fontana são.

Romina Farías, da Harper"s Bazaar Mexico, já vem à SPFW há cinco anos, exactamente quando se começou a falar mais dela. A fama actual da semana de moda brasileira, diz-nos, "tem a ver com o crescimento em geral do Brasil - que está nos olhos do mundo como a Índia ou a China".

A organização e a junção sob o mesmo chapéu da Luminosidade da SPFW e da Fashion Rio criaram solidez, comenta a perita e comentadora de moda Erika Palomino.

Estética saudável

Mas não se pode falar de moda brasileira sem falar de corpo - e o seu corpo são as suas modelos, com ou sem polémica por as mais famosas e procuradas pelos caça-talentos do mundo serem as loiras de Rio Grande do Sul, sem representar as morenas e mulatas tipicamente brasileiras. "O corpo é o principal da moda brasileira, não só pela maneira como o despimos mas como usamos a roupa nele. As modelos têm um biótipo quase europeu, mas têm uma ginga muito brasileira que passa para as roupas", sorri Erika Palomino.

Elas, do alto dos seus metros-e-noventa, são um dos pilares da comunicação da moda criada no Brasil (Paulo Borges acha que made in não interessa, o que está a dar é created in). E entra em cena Bill Clinton e o diabo que veste Prada, a directora da Vogue americana Anna Wintour. Nos anos 1990, reinava o heroin chic de Kate Moss. "Bill Clinton entrou pesado, dando um recado à indústria americana de que isso não deveria ser motivo de glamourização, que se devia pensar numa moda com estética saudável. E é nessa altura que Anna Wintour escolhe a Gisele, que estava no lugar certo na altura certa", recorda Paulo Borges. "Um dos pilares do que somos hoje partiu da mudança de eixo provocada pela indústria americana, tão poderosa em termos de consumo."

"As pessoas começam a olhar para o Brasil", constata Paulo Borges, e como o mundo ama o Brasil, acredita, e o seu sol e simplicidade, quer também o resto. Além do corpo da moda, quer a moda - nem que seja para ver ao longe, em fotos de Herzigova ou estrelas de novelas.

O Brasil está na moda?

A SPFW custa 13 milhões de reais (5,9 milhões de euros), 30 por cento dos quais de verbas públicas (autárquicas, estatais e federais, bem como da agência de exportação Apex). Gera receitas de 1,8 mil milhões de reais (824 milhões de euros) para a cidade, segundo a empresa de turismo da cidade, SPTuris, dos quais 85 milhões (39 milhões de euros) são fruto da confluência de cerca de cem mil pessoas para seis dias de desfiles e dois mil show-rooms (onde se fazem outros milhões).

Junta-se o cariz urbano e multicultural de São Paulo com a sua força económica, não se esquece a pobreza das favelas que encapsulam a cidade mas cria-se uma bolha em que a natureza e a tradição brasileira se fundem para criar tendências de moda, mas sobretudo um centro de moda da América Latina que quer partir à conquista do resto do mundo. Sem manias das grandezas.

É um pronto-a-vestir de gama alta, mas "não faria sentido criar uma moda nos moldes e padrão europeus", diz Paulo Borges sobre os 39 desfiles (entre os quais o de Ana Salazar) que a jornalista da Harper"s Bazaar descreve como "muitas modas numa semana de moda". "Temos uma grande chance de nos impormos como uma moda fresh, descontraída e descomplicada. Seremos sempre um nicho de preços intermédios", continua Paulo Borges

Cor, alegria, corpo, estampados, mas o mais importante de tudo é o olhar brasileiro. "É pós-moderno, mais mixado, que tem a ver com o sermos um país jovem. A moda brasileira não se lança como um movimento, como a escola japonesa ou belga. Tem um jeito brasileiro, e jeito já é uma palavra bem portuguesa...", evoca Erika Palomino, juntando numa língua dois países que amanhã começam a sua luta desportiva num Mundial incontornável - está nas fardas dos empregados das lojas, nas bandeirinhas dos carros e nas vuvuzelas verde e amarelas.

Até a data da SPFW foi condicionada pelo futebol e amanhã, nessas duas horas de estreia do escrete canarinho no Mundial sul-africano, o exasperante trânsito paulista vai parar, garante-nos o rádio.

Mas a sombra do Mundial, na cabeça de uma organização de moda típica que pensa anos para a frente, chama-se 2014. E tem como apelido "oportunidade". "Numa altura em que o Brasil se torna um país economicamente importante, politicamente relevante e culturalmente relevante, as coisas desabrocham", remata Paulo Borges. "O facto de sermos anfitriões do Mundial [em 2014] e dos Jogos Olímpicos [em 2016] é um recado do mundo para o Brasil. Uma nova chance. São dois grandes eventos globais, e raramente um país sedia os dois em dois anos. O Brasil nunca esteve tão bem." Nem tão na moda?

A jornalista viajou a convite do Portugal Fashion

Desfile de Alexandre Herchcovitch (em cima) e de Ana Salazar (ao lado) na São Paulo Fashion WeekColecção

de Lino Villaventura

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